Ciência e solidariedade opõem e fragilizam a barbárie

Em qualquer circunstância será muito difícil escapar às lições destes tempos

No conto “Civilização”, de Eça de Queiroz, um evento fortuito conduz o protagonista, “o [homem] mais complexamente civilizado”, a uma experiência de vida inédita e que encerra a possibilidade de realizações antes preteridas. De modo análogo, a pandemia do coronavírus inaugura para as sociedades contemporâneas uma realidade que expõe os limites de modos de vida que nos são muito familiares, ao tempo em que nos confronta com valores que contêm uma possibilidade de avanço civilizatório.

É preciso reconhecer que é muito cedo para dizer qual mundo sairá desta pandemia. Reflexões bem articuladas têm apontando possibilidades sobre a vida pós coronavírus que chegam a ser conflitantes, o que atesta que os sinais atuais são ainda insuficientes para previsões seguras. Mas a incerteza não impede a reflexão sobre questões possivelmente inescapáveis no futuro próximo.

A ciência – modalidade moderna de discurso explicativo da realidade, resultante de esforços intelectuais e investigativos inéditos, com impactos inigualáveis na produção de conforto e segurança para a vida cotidiana; e a solidariedade – valor ético que molda organizações e práticas que geram coesão e compartilhamento de oportunidades, que se contrapõem a processos de (re)produção de iniquidades e injustiças; ambos têm estado presentes em sociedades de todos os continentes nos últimos séculos.

Não são, portanto, uma novidade. Mas são, neste momento, o contraponto a uma onda que nas últimas décadas tem acumulado enorme expressão em muitas regiões do planeta. Obscurantismo e políticas econômicas concentradoras de riqueza e renda são as expressões máximas dessa onda anti-civilizatória e não é desprezível o seu alcance hoje, nem o universo de pessoas que morrem ou transitam para uma condição degradada de vida sob os seus efeitos.

Sem o distanciamento necessário para observar todas as dimensões desse processo, muitas pessoas passaram a tratar como aceitáveis ou não prejudiciais discursos baseados no senso comum ou no capricho, a exemplo de campanhas contra vacinas e outros desenvolvimentos científicos, contra os cientistas e contra as instituições que fazem ciência – as universidades e os institutos de pesquisa. No limite, passaram a levar a sério a tese de que a terra é plana, um retorno explícito ao cosmo medieval, pré-científico.

Do mesmo modo, acolhem como válidas receitas econômicas que geram a supressão de direitos para grande parte da população, que reduzem os investimentos públicos em saúde, educação, ciência e tecnologia, ao passo que garantem lucros maiores para o mercado financeiro. Prescrições que têm mantido ou transportado milhões de pessoas de volta à condição de pobreza ou pobreza extrema, subtraindo ou perpetuando a ausência de condições para uma vida com dignidade.

A questão é que, enquanto discutimos se vale mais a ciência ou a ignorância (é inacreditável que isso esteja em pauta em algumas sociedades, mas está), se a política econômica deve ou não distribuir riqueza e renda, a realidade da pandemia chacoalha o debate para bradar: sem conhecimento científico, serão milhões de mortos; e, sim, todas as pessoas importam, absolutamente todas, e os mortos podem ser quaisquer uns. É com isso que estamos sendo confrontados neste momento.

Mudanças nos biomas de todos os continentes e novas práticas de consumo tornaram inevitável a circulação nas cidades de organismos antes restritos a ambientes não alterados por processos antrópicos. Os problemas de saúde pública serão recorrentes e cada vez mais graves (desafios de impactos comparáveis serão enfrentados em muitas outras áreas, por exemplo, clima, recursos energéticos, alimentos etc.). A ciência precisará ser eficiente e rápida. A ciência? Sim, ela mesma. E a nação que não dispuser de um sistema de ciência e tecnologia robusto vai pagar muito mais caro por tecnologias e tratamentos – se a eles tiver acesso.

Sistemas eficientes de saúde pública serão necessários para proteger todo e cada cidadão. O país mais rico do mundo, paradoxalmente, não dispõe de sistema público de saúde e hoje convive com o maior número de pessoas infectadas e de óbitos causados pelo coronavírus. Será que permanecerá assim?

A cultura do individualismo, que imobiliza o impulso solidário, foi sempre favorecida pela complexidade das relações nas sociedades de mercado, complexidade que torna nebulosa a interdependência entre as pessoas. Quem se dá (ou se dava) conta, na vida cotidiana, de que a sua vida depende em alguma medida do acontece com cada pessoa de rosto indiferente com quem cruza nas ruas, ou, mais ainda, de como vivem pessoas a quilômetros de distância? Pois bem, agora está claro que cada um e todos importam.

Práticas solidárias se impõem se você aceita o fato social da interdependência, nem que seja a partir do confronto com o fato biológico de que somos todos potenciais vetores de doenças graves que podem levar qualquer um à morte. Melhor vivermos todos em habitações seguras, com saneamento básico, acesso à saúde e educação, dentre tantas conquistas que precisam ser universalizadas. Provocações em muitas outras áreas tornarão impositivo o reconhecimento da interdependência e a valorização da solidariedade.

Enfim, ciência e solidariedade são muito importantes, hoje, não apenas porque são essenciais para as sociedades enfrentarem os seus grandes desafios, mas, especialmente, porque se opõem e fragilizam a cultura da barbárie, que vem acumulado forças consideráveis em muitas nações. O alcance e a duração desse impacto são incertos, mas talvez estejamos diante de uma potencial inflexão na trajetória de projetos político-sociais anti-civilizatórios.

No conto de Eça, o narrador decreta o fim do século XIX, como uma “grande ilusão que findara, inútil e coberta de ferrugem”. Difícil dizer se esse será o destino do século XX, que, como sugerido pela historiadora Lilian Schwartz, se encerra com esta pandemia. Ou, pelo menos, se esse será o fim do obscurantismo e de soluções econômicas concentradoras de riqueza e renda, com sua indiferença ao sofrimento e à exclusão em todos os continentes.

Em qualquer hipótese, lembrando o ceticismo machadiano para com a “modernidade” no Brasil do século XIX, é bem provável que, havendo alguma mudança em direção a uma maior valorização das ciências, todas elas, e da solidariedade, essa transformação repercuta inicialmente apenas onde já se acumulam certas conquistas civilizatórias, e só tardiamente dê algum sinal em outros territórios. Em qualquer circunstância será muito difícil escapar às lições destes tempos.

*Emmanuel Tourinho é doutor em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP)

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital

Fonte: Carta Capital