Exorcizando mantras, adornos, espontaneismo e niilismo nas políticas de assistência estudantil no Brasil

“O Brasil não pode passar sem uma universidade que tenha o inteiro domínio do saber humano e que o cultive não como um ato de fruição erudita ou de vaidade acadêmica, mas com o objetivo de, montada nesse saber, pensar o Brasil como problema” (RIBEIRO: 1986, p.5).

Em junho do corrente ano, foi divulgado pela ANDIFES – Associação dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – uma pesquisa que fez o levantamento do “perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação das Universidades Federais Brasileiras”. O documento foi apresentado como um instrumento possível para se conhecer o alunado, estabelecer e formular políticas de equidade e assistência estudantil, combater a evasão e viabilizar o sucesso acadêmico dos discentes das IFES brasileiras. Os números foram por demais discutidos, a maioria das vezes, no sentido de exigir um maior aporte financeiro nos programas de assistência. Aqui não entraremos nessa seara. Objetivamos apontar para um problema seríssimo contido nos dados da pesquisa e assinalar para uma discussão teórica que problematize a assistência estudantil no nosso país como algo imperioso e necessário, além dos mantras e dos discursos enfeitados e decorados.

Quando falamos de assistência estudantil nas IFES, lembremo-nos, estamos falando de um programa estabelecido pelo estado para parcelas dos discentes da Universidade brasileira. É de bom alvitre que não os dissociemos. Então, para quê Universidade? E qual o papel da assistência
estudantil dentro dos objetivos do SER universidade? 

Tomamos de Darcy Ribeiro a definição que mais se aproxima do nosso modo de pensar: “Uma universidade que não tem plano de si mesma, carente de sua própria ideia utópica…sem a liberdade e a coragem de se discutir amplamente, sem um ideal mais alto, uma destinação que busque com clareza, só por isto está debilitada e se torna incapaz de viver seu destino” (RIBEIRO: 1986, p.9). É preciso refletir a Universidade brasileira distante daquela que por vezes se alimenta e se contenta consigo mesma nas realizações de cerimônias e nos aplausos dos discursos alinhados. A assistência estudantil não poderá fugir dessa assertiva. Em um pensar acadêmico nessa direção, a assistência estudantil não pode ser meramente vista e tratada como política menor do “direito à permanência”, mas da desconstrução desse discurso e da institucionalização da política promotora do conhecimento, com vistas à transformação e promoção social. Possibilitar condições para que o discente possa continuar e concluir um curso superior é meio, não um fim!

A pesquisa apresentada pela ANDIFES detectou, no que se convencionou chamar de “atividades extraclasses”, que 80 a 95% dos discentes das IFES não participam com afinco em atividades artísticas, esportivas, culturais e políticas. Esses números e estes fatos foram os menos discutidos e são, a nosso ver, a expressão de uma catástrofe. Que fazemos nós diante deste quadro?

Pouco problematizamos, e nos entrincheiramos no discurso fácil de exigir mais recursos e da indução ao “direito ao consumo”. E estão lá, nos dados da pesquisa ANDIFES, a absorção dos valores do direito ao consumo, de forma desenfreada e assustadora, por parte dos discentes das IFES, independente das classes sociais que pertençam. O consumo como meta é a morte política da universidade e de qualquer ação acadêmica que trate a formação e ou a assistência estudantil. Fazenos lembrar uma antiga propaganda politicamente incorreta, em que uma criança, hipnotizada, balançava a cabeça repetindo como mantra: “compre batom, compre batom, compre batom…”A despolitização noticiada dessa juventude dentro dos muros da universidade trará consequências extremamente danosas ao mundo da cultura e do saber científico. Se estes dados realmente estiverem corretos, algo precisa ser urgentemente pensado no campo da assistência estudantil. Por outro lado, esses dados também nos fazem indagar que formação superior universitária é essa que não consegue ter a criticidade necessária para fomentar o contradiscurso mediático da cultura de massa? Ou seriam esses alunos a expressão mais clara de nós mesmos? Como nos sugere Pedro Demo (2008), “a despolitização da sociedade deveria nos preocupar, porque, ao contrário do que o mercado indica (ou seja, que expectativas alternativas não fazem mais sentido), a despolitização é o signo seguro de uma politização em marcha impiedosa”. A julgar pelos dados da pesquisa da ANDIFES, nossa juventude universitária “parece” estar condenada a esta assertiva. Resta-nos o debate e as ações no sentido do que ainda poderemos fazer para reverter este quadro.

A assistência aqui deve ser pontuada criticamente e necessita ter um claro viés relacionado à formação cidadã do discente, culturalmente aberta e ligada à fomentação do saber e da cidadania política. Caso contrário, estaremos fazendo meramente um simulacro de assistência que não passa de uma política acrítica de indução a despolitização, feita através da sedução e distribuição de benesses a sujeitos beneficiários. E aqui não é propriamente uma crítica a um vício da assistência que fazemos, mas seu limite próprio. Quando reiteramos nos discursos da assistência estudantil que cabe ao poder público assumir, por completo, o papel de elevar a condição econômica dos discentes ditos “vulneráveis socialmente” a um patamar de classe média, de uma hora para outra, estamos os educando acriticamente, com a banalização de um discurso apolitizado e quase religioso. E pior, mascaramos os códigos que garantem a estrutura de classes e a distribuição de poder na sociedade civil: o campo do saber e do conhecimento.

Quando advogamos que a assistência deva ser parte de uma ação acadêmica que vá além da mera concessão de dividendos financeiros e da indução cega ao direito do consumo, é porque acreditamos que não é correto implantar a expansão e a assistência estudantil dissociadas de um projeto que almeje o sucesso acadêmico discente, e que também trabalhe a desumanização há muito praticada entre nós. O sucesso acadêmico é apenas parte das metas. É necessário sabermos aproveitar este momento histórico para que façamos das Pró-Reitorias de Assuntos Estudantis entidades acadêmicas, cuja atuação busque também inserir os discentes no domínio dos pilares do conhecimento, missão do ensino superior, a partir de um projeto humanístico no campo da cultura, das ciências, da política e das artes. Para Jacques Delors(2004, p. 89-102), o processo de educação e superação humana envolve quatro grandes necessidades, a saber: 1) aprender a conhecer, para que sejam adquiridos instrumentos de compreensão e dominação dos códigos que dificultam as intervenções e mudanças sociais; 2) aprender a fazer, para que se envolva com seu meio, tenha relações de pertencimento e suscite formas de interferência; 3) aprender a viver junto, afim de que possa participar, colaborar, ter tolerância, ser sujeito ativo da sua vida e aprenda a respeitar a divergência; e 4) aprender a ser; para isso, a necessidade de preparação para formular juízos, ter maturidade para discernir por si mesmo; enfim, estar a altura de agir com discernimento, autonomia e responsabilidade. Quantos de nós estamos preocupados com isso?

A assistência estudantil deve ser pensada dentro de uma concepção acadêmica, livre da pobreza das palavras que a marca e sem o espontaneísmo que a limita, no campo da teoria e da
prática. E deve visar o sucesso acadêmico, mas também a maturação da cidadania. É necessário ir além do discurso pobre da “permanência”. Em artigo anterior, já tínhamos mencionado a necessidade de qualificar as nossas políticas de assistência, excluindo todo um conjunto de palavras depreciativas que ainda usamos no campo dessa política pública. Voltamos a reiterar essa necessidade. Da mesma forma, é necessário assumir que necessitamos de teoria e análises mais acuradas para que não fiquemos na dimensão irreflexiva, construindo ações pontuais e longe de serem acadêmicas.

No seu último livro publicado em 1976, cujo título é “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa”, Paulo Freire oferece um conjunto de princípios éticos para o ensino, pautado na noção de construção da autonomia, que aqui nos hasteamos a copiá-lo, mudando o sentido da escrita, para fazermos mais uma provocação com as políticas de assistência estudantil. São elas:

1. Assistência Estudantil exige respeito pelo conhecimento do estudante;
2. Assistência Estudantil exige estética e ética;
3. Assistência Estudantil exige dar o exemplo;
4. Assistência Estudantil exige respeito pela autonomia do estudante;
5. Assistência Estudantil exige bom julgamento;
6. Assistência Estudantil exige curiosidade;
7. Assistência Estudantil exige autoconfiança, competência profissional e generosidade;
8. Assistência Estudantil exige liberdade e autoridade;
9. Assistência Estudantil exige saber ouvir;
10. Assistência Estudantil exige amor aos estudantes;

Realizar a Assistência Estudantil para além da política de fomentar o direito ao consumo é, nesse momento histórico, evitar as posições gêmeas do cinismo e do niilismo, tão em uso no mundo nos tempos atuais. O cinismo é uma ferida aberta na alma dos que nutrem a falta de esperança, de forma que veem todas as coisas como dadas e acabadas, e por isso, nada poderá ser induzido à mudança. É uma doença que alimenta a antiutopia. O niilismo é a forma mais dura da rendição, é a exclusão da esperança. E se não existe esperança, por que pensar em mudanças? Pensar a assistência estudantil como política pública de estado é ter a clareza que precisamos ter metas, fins, objetivos, meios e avaliação que visem o sucesso cidadão dos discentes. E isto será possível se colocarmos nas nossas metas a dimensão da formação cultural, esportiva, política, científica, ética. Como bem nos ensina Jacques Marovitch(1997, p. 51): “as metas acadêmicas são renováveis para atender os anseios da sociedade, o mesmo não se pode dizer dos valores éticos – estes irrevogáveis e permanentes”.

É preciso, pois, colocarmos a dimensão da assistência estudantil no coração do SER dos objetivos maiores do ensino superior, qualificar os nossos discursos, repensar as nossas práticas e as nossas exigências, instituir novos objetivos. Somente assim, estaremos quitando minimamente uma dívida histórica e colocando a Universidade Pública no patamar necessário a pautar a nação, uma tarefa hercúlea, mas necessária para clarearmos nossas funções e nossos deveres para com o povo do Brasil, pagadores dos nossos salários e a quem de fato, devemos prestar contas e não somente mandar nossas contas.

*Mário Resende é professor e ex-pró-reitor de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Sergipe (UFS).