O caso do Enem (Ou acaso do Enem?)

O Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) surgiu no final da década de 1990, com finalidades e características bastante parecidas com as dos exames equivalentes existentes em diversos países. Entretanto, diferentemente do que ocorreu em outros países, a introdução de um exame de final de ensino médio não surgiu como uma solução para eventuais problemas educacionais.

Entre os argumentos que justificavam a introdução do Enem estava a expectativa de que ele, ao avaliar as “habilidades e competências”, daria maiores chances para os estudantes desfavorecidos na disputa por vagas no ensino superior. Entretanto, essa expectativa não corresponde à realidade. Qualquer que seja o tipo de exame, desde que bem feito, leva a resultados basicamente equivalentes. Se a ordem dos classificados por um procedimento de avaliação não é exatamente igual à de outro, isso é irrelevante para qualquer finalidade prática. E no topo da lista estarão os estudantes que freqüentaram boas escolas e provenientes das camadas mais favorecidas da população. Para esse grave problema da segregação social e econômica do nosso sistema escolar, o Enem não é uma solução.

Inicialmente, o resultado do Enem foi usado como um processo seletivo apenas por instituições privadas pouco disputadas. Adotando o Enem, essas instituições têm vários ganhos: recebem uma espécie de aval das instituições públicas, no caso o próprio MEC, que faz o exame; passam a atrair estudantes de regiões mais distantes; e economizam dinheiro, pois não precisam fazer seus exames de seleção.

Sistema de seleção unificado

A partir de 2009, o Enem passou a ser adotado por diversas instituições federais como um sistema de seleção unificado nacionalmente, com a justificativa (verbete Enem da Wikipedia, consultada em 16/12/2010 ) “que o vestibular tradicional desfavorece candidatos que não podem se locomover pelo território. Assim, um jovem que queira prestar medicina e tenha problemas financeiros, dificilmente poderá participar de processos seletivos de diferentes faculdades – e terá suas chances de aprovação diminuídas”. Ora, se um estudante não tem condições financeiras de se locomover pelo território, também não terá condições de se manter fora de casa. Além disso, a distância entre o local de moradia e o local de estudo é um fator associado à evasão escolar. Ainda pior, como a procura qualificada pelos cursos mais concorridos tem como origem as regiões mais ricas do país, esse fato prejudicaria exatamente as regiões mais pobres.

Outro aspecto que ilustra que o pretenso mérito do Enem pode ser um demérito diz respeito à promoção do desenvolvimento regional feita pelas instituições de ensino superior que ocorre basicamente pela formação de quadros profissionais. Ao “importar” estudantes de outras regiões do país e que, depois de formados, tenderiam a voltar para suas cidades e estados de origem, uma instituição teria o seu papel de promoção do desenvolvimento local muito reduzida.  Outro argumento a favor do uso do Enem afirma que ele se opõe ao vestibular tradicional em vários sentidos. Um deles é quanto à tensão típica dos estudantes. Ora, o Enem é um vestibular e como tal provocará todas as tensões que os outros vestibulares também provocam.

É importante ainda observar que há um grande grau de desconfiança em relação ao Enem por parte das instituições com cursos mais concorridos. Essa desconfiança fica patente quando vemos que nesses cursos a nota do Enem ou entra na composição final com um peso muito pequeno em relação à nota do vestibular tradicional, ou é usado como uma primeira fase. Neste caso, o Enem não só não resolve problema algum, como cria um: embora a ordem de classificação seja a mesma caso a instituição adote ou não o Enem, os estudantes são obrigados a fazê lo, pois, do contrário, poderão ser prejudicados na média final ou mesmo excluídos se o Enem for usado como uma pré-seleção.

O Enem e as escolas de ensino médio

Outro argumento a favor do Enem é o fato que ele seria uma referência unitária para as escolas de ensino médio de todo o país. Primeiro, há a crítica daqueles que discordam que impor um padrão unitário de educação seja adequado ao país. Questões regionais são relevantes quando se trata de vários aspectos do ensino, como nas disciplinas de História e Geografia ou no uso da língua. Cabe a pergunta: quem disse que unificar é bom? Além disso, as poucas escolas que dispõe de recursos suficientes, bons professores e infra estrutura adequada, não precisam dessa indução, pois sabem o que devem fazer e têm condições para tal. Quanto à enorme maioria das escolas públicas, não é a falta de uma referência clara que as impede de serem melhores, mas, sim, a falta de recursos e as péssimas condições de estudo e trabalho que oferecem.

O Enem, o Prouni e as avaliações

Há duas confusões relativas ao Enem. Uma delas é quanto à relação entre esse exame e o sistema de bolsas Prouni. Como a atribuição de bolsas é feita com base no resultado do Enem, muitas pessoas pensam que o Prouni só existe por causa do Enem. Não é assim. As bolsas do sistema Prouni  são concedidas por instituições privadas que se beneficiam de isenções de taxas e impostos. Esse sistema pode existir independentemente do Enem e a seleção de beneficiários poderia ser feita de formas mais adequadas. Como o sistema Prouni obriga os estudantes a fazerem o Enem, um empresta falsa legitimidade ao outro e, ambos, confundem a opinião pública e os estudantes.

Outra confusão é quanto à função avaliadora do Enem. Ora, o Enem avalia mal e é desnecessário. O “mal” se refere ao fato que é opcional e pode ser repetido várias vezes, não tendo, assim, as características necessárias de um bom instrumento de avaliação. E é desnecessário, pois há outros sistemas de avaliação, mais rigorosos e precisos.

Conclusão

Colas, provas erradas, vazamento de temas, provas feitas por “pilotos”, roubo da folha de questões etc colocam uma questão adicional: é possível fazer uma prova confiável para mais do que 3 milhões de estudantes espalhados por mais do que 100 mil salas? Pela experiência, parece que não.

Há ainda muitos aspectos que poderiam ser analisados. Entretanto, os citados parecem suficientes para que possamos tomar algumas decisões quanto ao Enem. Afinal, que problemas ele resolve? Que problemas ele cria? Vale a pena envolver milhões de estudantes para resolver pouquíssimo problemas e criar muitos outros? Certamente, não.

O sistema educacional brasileiro tem problemas muito claros e bem conhecidos, como péssimas condições de trabalho dos professores, falta de atrativo para o exercício do magistério, falta de equipamentos e materiais adequados nas escolas etc. O Enem tem sido usado como a roupa do rei nu, que continua nu, e provoca discussões que acabam por colocar de lado o ataque às verdadeiras questões. Enquanto isso o nosso sistema educacional continua ruim e, em não sendo verdadeiramente melhorado, piorando.

Otaviano Helene é Professor do Instituto de Física da USP, mantém o blog http://blogolitica.blogspot.com/