UFRN – Uma nova classe de neurônios

Por José de Paiva Rebouças 

Apesar de grandes avanços das neurociências, o cérebro guarda ainda muitos mistérios. Até hoje não se sabe, por exemplo, por que algumas pessoas perdem a consciência e não voltam mais, o que é a atenção ou, mais além, o que é exatamente a consciência. Falta muito para se chegar a uma compreensão clara desses fenômenos, mas a ciência tem avançado e surpreendido com novas descobertas. É o caso de um trabalho recém-publicado na Neuron que identifica uma nova classe funcional de neurônios, o que pode abrir uma janela importante para nossa compreensão sobre os mecanismos da percepção, atenção e a consciência.

Essa nova classe distinta de neurônios, descoberta no córtex visual de macacos, apresenta atividade em salvas (bursts) com forte sincronização gama e respostas muito seletivas à orientação do estímulo. Entre as ondas cerebrais conhecidas, a banda-de-frequências gama é certamente muito importante. Sabe-se que essas ondas estão associadas a diversos processos cognitivos que envolvem processamento em larga-escala. Um bom exemplo disso é a atenção. Quando se foca a atenção em algum objeto, o córtex produz ritmos gama, que favorecem a transmissão seletiva de informações a grandes distâncias no cérebro.

Durante o comportamento, o córtex gera diferentes padrões de atividade. No laboratório, esses padrões podem ser observados através do registro de potenciais-de-ação de células isoladas (spikes) e da atividade de populações de neurônios (potenciais de campo local). Esses sinais refletem o processamento da informação nas redes neurais. Em geral, para se estudar mecanismos associados a cognição, o que os cientistas fazem é correlacionar os diferentes padrões de atividade neural aos vários aspectos do estímulo, ou condições de controle da atenção.

Neurocientista Sergio Neuenschwander foi um dos principais colaboradores do estudo

Neste novo estudo, estímulos visuais (grades em movimento) com diferentes orientações foram apresentados em uma tela de computador, enquanto a atividade de spikes e potenciais-de-campo do córtex visual primário era registrada. Comumente, células que geram spikes largos exercem uma ação excitatória nas redes neurais, enquanto células que geram spikes estreitos, uma ação inibitória. O objetivo primário do estudo era entender como essas diferentes classes participam na geração de padrões oscilatórios gamma do córtex.

Para grande surpresa do neurocientista Martin Vinck, que coordenou o projeto, a forma de spikesde uma porção substancial de células excitatórias era estreita e não larga. Isso era muito inesperado. Em colaboração com o neurocientista Sergio Neuenschwander, do Instituto do Cérebro (ICe) da UFRN, foi possível analisar dados obtidos de duas espécies de macacos, o rhesus (Macaca) e capuchinhos (Sapajus). Esses dados foram comparados com registros feitos no córtex visual de camundongos.

Ao fazer essa observação, os cientistas começaram a estudar em detalhes esse fenômeno e descobriram que, em geral, esses spikes fazem bursts, que é, na verdade, uma série muito rápida de spikes, que se processa como numa salva de tiros, toda vez que a célula é ativada. “O interessante nessa observação é que, dependendo da condição do estímulo, esses spikes geram bursts que refletem muito fortemente a seletividade das respostas à orientação do estímulo”, acrescenta Sergio Neuenschwander.

O estudo assinado por 14 cientistas da Alemanha, Brasil e EUA, sob liderança de Martin Vinck, do Ernst Strungmann Institute, e importante participação de Sergio Neuenschwander, focou em explicar os mecanismos da geração de processos gamas no córtex visual.

“O que mostramos é que as narrow-band bursting cells têm uma resposta gama muito seletiva para a condição preferida de resposta. É como se essa célula contribuísse muito para a representação do estímulo especificamente no ritmo gama. É possível que a representação do objeto seja particularmente mais relevante, precisa, pela atividade desta célula específica”, explica Sergio.

A ideia é que essa nova classe específica de neurônios contribui de uma maneira única e específica para a geração e manutenção dos ritmos gamas durante a percepção. “Significa que a percepção depende disso”, reforça o neurocientista brasileiro. “Esse é um estudo de mecanismo da gama e a gama é um processo certamente importante porque traz essa ideia de dinâmicas de larga escala no cérebro. Um mecanismo que possa explicar essas interações em larga escala no cérebro”, adiciona.

Olhando para esse processo, podemos dizer que existe algo de especial no córtex do macaco, ao menos em comparação com o camundongo que não apresenta esse tipo de célula. É provável que esse tipo de resposta, presente no primata, seja muito importante para o controle dos processos gama. “Então, essa é o que é verdadeiramente novo nesse trabalho, porque ele mostra que com um registro extracelular é possível observar diferentes comportamento de spiking das células, assim como classificá-los”, afirma.

O neurocientista lembra que há muito a se entender sobre a gama, pois é possível que essa onda cerebral tenha importância fundamental no processo de atenção e percepção, por isso tanto interesse das revistas por trabalhos desse tipo.

Processo

Os dados para essa pesquisa foram obtidos ao longo de uma década na Alemanha, por Sergio e Bruss Lima, quando estavam no Instituto Max-Planck, e por dois anos no Instituto do Cérebro (ICe), com a participação da estudante Katia-Simone Rocha (co-autora do estudo), no Vislab (Laboratório coordenado por Sergio Neuenschwander no ICe). Para chegar aos resultados atuais, os dois conjuntos de dados foram colocados lado a lado para que fossem descritos. Trata-se de um dado de registro extracelular que permite fazer inferência das características funcionais a partir deles e são registrados no macaco acordado enquanto observa estímulos visuais.

Sergio  destaca que esse tipo de trabalho é muito difícil de ser feito justamente porque envolve estudos durante o comportamento em macacos. Aqui no Brasil, atualmente, existem poucos laboratórios capazes de conduzir esses experimentos: o Vislab e outro no Rio de Janeiro, dirigido por Bruss Lima (ex-orientando do Sergio). Também são poucos na Europa, mas as grandes universidades e institutos de pesquisas do mundo têm grande atenção a esse tipo de trabalho.

Por que o estudo é importante?

Dois outros fatores tornam esse trabalho muito relevante para a ciência, além dos já explicados. O primeiro é o fato de se tratar de um estudo feito em primatas não humanos em comportamento, ou seja, acordados.

Segundo Sergio, próximo passo é testar em outros modelos animais

 

Isso é relevante porque o cérebro visual do macaco, sabidamente, é próximo ao do humano. Aprender sobre o cérebro do macaco permite compreender mais sobre a percepção humana. Quer dizer, abre possibilidades de ter mais clareza sobre os processos que nos definem como indivíduos únicos.

O segundo fator diz respeito à explicação de mecanismos da geração de processos gama no córtex. Nas últimas décadas, isso passou a ser uma página muito importante na neurociência de sistemas porque estão em busca de processos de integração em larga escala no cérebro, coisa que ainda se sabe muito pouco.

Avançando nas possibilidades futuras deste trabalho, que deve ser testado agora em novos modelos animais, é possível imaginar que conhecer mais sobre os processos gama pode representar, no futuro, desdobramentos que ajudem a compreender mais sobre os limites do cérebro e do comportamento humano.

“Se você tem uma dinâmica neural que reflete na atividade de células únicas, ou nessas específicas, é possível que, em condições de déficits de atenção, onde existe uma interação menor – no caso de uma doença degenerativa, como Alzheimer –, você tenha uma diminuição da atividade específica dessas células. Então, você pode compreender melhor os padrões que esse neurônio em particular gera, e compreender melhor como são propagados nos circuitos neurais”, complementa Sergio Neuenschwander.

Uma teoria muito interessante sobre o ritmo gama é seu eventual desdobramento clínico. Isso porque, a sua indução no cérebro pode melhorar ou diminuir os danos de demências e distúrbios. Por exemplo, a ciência suspeita que a esquizofrenia possa ser um distúrbio das interações em larga escala do cérebro, então ao compreender melhor os mecanismos de como esses ritmos são gerados, talvez seja possível pensar na possibilidade de corrigi-los.