‘Universidade do Lula’ criada para receber africanos vive crise no sertão

De um lado da estrada, vê-se a serra e a vegetação do maciço do Baturité, no sertão do Ceará. Do outro, oficinas, imóveis abandonados e uma antiga fábrica. Fica ali, em Redenção (a 60 km de Fortaleza), a sede da Unilab, a Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira.

Criada em 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ela recebe jovens do Timor Leste e de países africanos de língua portuguesa, além de brasileiros –hoje, cerca de 30% são estrangeiros. É um exemplo da chamada diplomacia Sul-Sul que vigorou no governo petista.

A homenagem a seu criador está ainda numa das paredes, numa placa de concreto com as marcas das mãos de Lula, gravadas em 2013 quando o petista foi receber o título de doutor honoris causa.

Nesta sexta (18), ele volta à universidade em seu giro pelo Nordeste. Muita coisa, porém, mudou entre suas duas passagens: a economia entrou em crise, Michel Temer (PMDB) interrompeu um ciclo de 13 anos do PT, e a Unilab, vitrine do governo anterior, enfrenta grave crise financeira e tem procedimentos parados no Ministério da Educação.

Hoje não se sabe como contas como as de luz, comida e gasolina serão pagas até o fim do ano. “Até julho já gastamos R$ 22 milhões da verba de custeio, do total de R$ 37 milhões. Eu sou otimista, acho que dá até outubro”, disse na última semana o reitor Anastácio de Queiroz Sousa. E depois? “Não tenho resposta. É uma situação de extrema gravidade.”

Após reunião no MEC nesta quinta (17), ele disse que tenta resolver a questão com outros recursos, inclusive de emendas parlamentares.

As verbas de custeio, porém, não são o único problema. Por ter praticamente só jovens de baixa renda, a universidade tem gastos elevados com assistência estudantil –moradia, transporte e alimentação (almoço e jantar). O orçamento para isso, porém, já acabou. Para fechar a conta, a universidade vem usando recursos dos investimentos.

A consequência é a demora na entrega de obras de unidades de ensino, restaurante e moradia estudantil. A situação mais grave é a do campus de São Francisco do Conde (Bahia), em que há aulas ocorrendo em uma escola infantil.

Sob a justificativa de estancar os gastos, a reitoria chegou a anunciar, em julho, a suspensão dos auxílios para estudantes estrangeiros que ingressassem a partir de 2018.

“O corte significaria a impossibilidade de que alunos viessem para o Brasil, justamente numa universidade de integração”, diz o professor Fábio Baqueiro Lopes.

A medida foi suspensa após forte reação interna. Um dos protestos culminou com o reitor encurralado por duas horas em seu carro, de onde só saiu sob a escolta de policiais.

Redençao, Ceará. 10.08.2017. Universidade criada por Lula e com alunos estrangeiros sofre com cortes do Governo Temer. Blocos de Ensino e alojamentos estao com obras paralisadas na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), uma das duas Universidades internacionais criadas no Governo Lula na cidade de Redençao, interior do Ceará. Metade dos estudantes da Unilab são africanos e com a falta de verba no novo governo, nova política externa, eles têm enfrentado uma série de problemas. Há obras paradas, moradia estudantil inacabada e há um mês quase cortaram a bolsa dos africanos, o que acabaria com a universidade. (********EXCLUSIVO******) Foto: Jarbas Oliveira/FolhaPress
Prédio da Unilab (Universidade de Integração da Lusofonia Afro-Brasileira) em Redenção (CE)
Crédito da foto: Folha de São Paulo

MUDANÇAS

A crise na Unilab coincide com uma controvérsia sobre outra universidade da diplomacia Sul-Sul, a Unila (federal da Integração Latino-Americana). Localizada em Foz do Iguaçu (PR), ela recebe estudantes latino-americanos.

Recentemente, foi alvo de uma emenda do deputado Sérgio Souza (PMDB-PR) que na prática a extinguiria da forma como funciona hoje.

Já no caso da Unilab, as dificuldades em Brasília não estão no Congresso. A universidade tem dois processos parados no MEC. Um é para abrir dois cursos de medicina, previstos para 2016. “No ministério, me falaram que, neste ano, não sai”, diz o reitor.

O outro é o estatuto, há mais de seis meses à espera de homologação. O aval permitiria à instituição escolher o seu reitor –nos últimos seis anos, foram quatro dirigentes, todos indicados pelo governo.

O MEC diz que o estatuto está sob análise e que não há prazo legal para isso. Em relação aos cursos de medicina, afirma que a universidade decidiu adiar o início para 2018. Sobre a falta de recursos, declara que elevou o limite de empenho de todas as federais, e que elas têm autonomia para gerir seus gastos.

REDENÇÃO

Longe dos gabinetes de Brasília, o som no pátio da Unilab em Redenção mostra como, com crise financeira ou sem, a integração acontece por ali. Ouve-se não só o português, nas formas faladas por seis países do mundo, mas também o tétum, do Timor Leste, e o crioulo, falado em países africanos.

“Conversando com as pessoas, percebi que não tinha noção de muita coisa que acontecia no meu próprio continente”, diz a angolana Helena Gunza, 24.

Isso não significa que não haja ruído. “No início, quando o professor pedia para formar grupos, os brasileiros só se juntavam entre si”, diz Satu Nhanru, 24, que veio da Guiné Bissau. No seu país, não há universidades públicas. Por isso, é a nacionalidade mais frequente na Unilab.

Seu conterrâneo Décio Gomes, 25, conta que encontrou no país uma realidade diferente da que esperava. “Eu assistia a Record na África, e o Brasil que a gente vê na TV era o do Rio e de São Paulo”, diz.

O Brasil onde ele e os outros estrangeiros chegaram é o de Redenção (CE), município escolhido para sediar a Unilab por ter sido o primeiro a abolir a escravidão, em 1883, cinco anos antes da Lei Áurea.

Com 27 mil habitantes, adapta-se à vinda de estrangeiros. Feitas às pressas para aluguel, algumas casas têm problemas até no telhado, diz Saara da Silva, de Cabo Verde.

O moçambicano Leonardo Jorge elogia a qualidade do ensino, mas lista outras dificuldades: insegurança, saúde precária e locais com esgoto a céu aberto. Talvez até haja um lado positivo nisso, diz. “Os erros e falhas da Unilab podem nos dar a revolta e o aprendizado para que a gente corrija os problemas dos países de onde viemos.”

Fonte: Folha de São Paulo