Gratuidade: Nova edição de revista do Ipea discute cobrança de mensalidades nas universidades públicas, que já foram muito mais elitistas

Nos últimos 20 anos, o Brasil registrou um aumento significativo na proporção de alunos mais pobres no ensino superior. Este crescimento foi em boa parte resultado da melhoria da renda, da expansão dos ensinos médio e superior, e de políticas específicas para populações de baixa renda, como as cotas e o ProUni. Ainda assim, este nível segue sendo para poucos no Brasil, fato que alimenta o debate sobre se devemos ou não cobrar mensalidades daqueles que podem pagar.

A nova edição da revista Radar, que o Ipea divulga hoje em seu site, traz mais insumos para essa discussão, com artigos favoráveis e contrários à cobrança. Num dos trabalhos, os pesquisadores da Universidade Federal da Bahia Claudia Malbouisson, Gisele Tiryaki, Verônica Ferreira e Vinicius Mendes identificam pelos números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE, esse aumento de alunos mais pobres no ensino superior. De 2003 a 2013, o percentual de universitários em instituições públicas que pertenciam aos 25% mais pobres da população praticamente dobrou, de 9,7% para 18,8%. No mesmo período, a proporção dos 25% mais ricos caiu de 62,7% para 45,2%. Ainda assim, os autores argumentam que “esses resultados corroboram a hipótese de que a maior parte dos alunos no ensino superior são aqueles que podem pagar pela educação”.

Também em favor da cobrança, os pesquisadores Bruce Chapman (Universidade Nacional da Austrália) e Paulo Meyer Nascimento (Ipea) defendem um modelo diferente de uma simples mensalidade ou do que é feito hoje no Fies, em que o aluno ganha uma bolsa, mas logo depois de formado precisa pagar sua dúvida, gerando alta inadimplência. Para os dois, o Brasil ganharia se adotasse o modelo australiano, em que a cobrança é feita também posteriormente à formatura, mas via desconto no imposto de renda. Com este mecanismo, argumentam, o risco de inadimplência é muito menor, pois o estudante só começaria a pagar sua dívida no momento em que tivesse renda suficiente para ser tributada na fonte.

Na publicação do Ipea, o argumento em favor da manutenção da gratuidade é defendido principalmente pelo professor da UFF Fabio Waltenberg. Um de seus pontos é o de que o ensino superior está se democratizando com o maior acesso de alunos mais pobres e que a distorção entre o que se gasta por aluno no ensino superior e na educação básica (um dos argumentos em favor da cobrança) diminuiu muito nos últimos 15 anos. Ele também destaca que a experiência australiana -defendida por Chapman e Nascimento- não resolveu o problema de subfinanciamento das universidades públicas naquele país. Por fim, defende ainda que a discussão seja mais ampla, e considere também o que aponta como problemas do nosso sistema tributário que acabam beneficiando os mais ricos. “Por que a gratuidade da universidade pública ofende, mas a dedução de impostos de gastos com saúde privada não?”, indaga Waltenberg.

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O perfil do aluno que frequenta o ensino superior público e a possibilidade de cobrar mensalidades de quem pode pagar foi tema de uma coluna recente.

Concordo com o argumento de que, num país extremamente desigual e com necessidade de ampliar investimentos direcionados aos que mais precisam, faz sentido cobrar daqueles que possam pagar por seus estudos no ensino superior. O risco, porém, é achar que isso vai resolver o problema de financiamento das universidades públicas, desobrigando o Estado a investir nelas.

Dados que tabulei na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) de 2015 mostram que, se aplicássemos no setor público os mesmos critérios de distribuição de bolsas do ProUni, a maioria (58%) dos matriculados em universidades mantidas por governos seriam elegíveis ao benefício de uma bolsa integral, por ter renda média familiar per capita inferior a 1,5 salário mínimo. Outros 27% poderiam se candidatar a uma bolsa parcial, por terem renda per capita entre 1,5 e três salários mínimos. Ou seja, sobrariam apenas 15% de estudantes que, pelos critérios do ProUni, poderiam pagar uma mensalidade integral.

Há uma ressalva importante a ser feita nessa conta, que é o fato de a Pnad, assim como qualquer outra pesquisa em que a renda é declarada pelo entrevistado, tende a subestimar o nível de renda das pessoas. Ainda assim, é seguro afirmar que uma boa parcela dos estudantes universitários (provavelmente a maioria) teriam muita dificuldade para pagar mensalidades ou assumir dívidas a serem pagas em pouco tempo. O Brasil está conseguindo, ainda de forma insatisfatória, mas com alto esforço, colocar mais alunos de menor nível socioeconômico em suas universidades públicas e privadas. Esse movimento precisa continuar, e é difícil imaginar um cenário possível para isso sem que o Estado continue investindo na educação pública, inclusive no nível superior.

Cobrar mensalidades dos que podem pagar pode até ser uma medida justa, mas não resolverá o problema do financiamento do ensino superior público.

Fonte: O Globo