Além de “pobre”, “baixa renda”, “carente”, necessitado de “ajuda” e “auxílio”: problematizando as simbologias das políticas de “assistência estudantil” no Brasil

As políticas de gestão dos recursos destinados à formação e sucesso estudantil nas IFES – Instituições Federais de Ensino Superior Pública – se constituem em um campo de disputas de projetos políticos distintos. Esses projetos utilizam no seu arcabouço de sustentação uma série de símbolos e conceitos que são cotidianamente reforçados, por vezes acriticamente, desse modo, propor determinadas mudanças, mesmo que seja no campo semântico, não se constitua tarefa das mais agradáveis. Uma situação que nos incomoda profundamente é a adjetivação empregada para caracterizar uma parcela dos alunos que desenvolvem determinados projetos e recebem bolsas acadêmicas específicas. Dentre essas adjetivações, reportamo-nos aos termos de “pobre”, “vulnerável”, “assistido”, “carente”, “baixa renda”. Esses alunos se constituem, na sua grande maioria, de discentes oriundos das escolas públicas que fazem parte de projetos e ações desenvolvidas por meio de políticas públicas.

Os rótulos de “pobre”, “vulnerável”, “assistido”, “carente”, “baixa renda” são dados de acordo com os valores que estruturam nossa sociedade. São palavras que carregam um poder simbólico que registram e impõe espaço-temporalmente, valores e idéias, sócio-culturalmente instituídas. Tais nomenclaturas foram criadas por parte dos atores sociais que construíram uma legislação que estabelece a política pública para essa parcela dos nossos discentes, e, portanto, foram arquitetadas conforme a conveniência de agentes específicos. Neste aspecto, um primeiro dado que salta aos olhos nesse discurso é uma ligação direta entre a escola pública e a “pobreza”. A assertiva que todos os que estudam em escolas públicas são pobres não se sustenta diante de uma análise mais criteriosa. Mas há algo muito cruel nessa afirmativa: é diretamente apontar a pobreza como responsável pelo ensino que se ministra na escola pública. Neste pensar, a escola pública estaria em deficiência por causa de sua clientela pobre, quando sabemos que são múltiplos os fatores dessa crise.

Muitas vezes, ao generalizarmos esses conceitos não nos damos conta que somos induzidos a pensar e agir sob uma ótica politicamente perversa que fortalece a segregação social existente na nossa sociedade. Acreditamos que as palavras têm peso, força, energia, impulsionam ou desaceleram, prendem, estabilizam, escravizam, carimbam. Longe de se pensar uma conspiração orquestrada, essa série de conceituações são resultado de manifestações culturais atuando juntas e que foram estabelecidas historicamente, por isso, se refletem em um comportamento acrítico. Não seria novidade também haver partes interessadas que tiram proveito desse contexto e contribuem para a manutenção dessa cultura, mesmo nas supostas casas do conhecimento, as Universidades, cujo papel é, no mínimo, problematizar e discutir a sociedade.

Como entende Pedro Demo (2008), o problema seminal de nomear o outro de “pobre” é que “quando falamos de pobreza, a parte mais conhecida é a material, econômica, quantitativa, expressa em múltiplas carências como de renda, moradia, emprego, alimentação, etc”. Para auferirmos essa situação acriticamente somos induzidos a observar que o mais importante no fenômeno da pobreza é a dimensão que o método pode medir, não aquilo que mais compromete a vida do homem dito por pobre. Ser carente não é apenas não ter certas coisas, é principalmente ser destituído de “ter” e, em especial, de ser, um tipo de exclusão que tem em sua origem não só em carências materiais, mas, mormente, em imposições mobilizadas por processos de concentração de bens e poder.

É urgente a necessidade de trabalhar essas adjetivações que acompanham as nossas políticas acadêmicas estudantis presentes nas IFES. Adjetivações como “carente”, “baixa renda”, “programa auxílio”, “permanência”, “ajuda”, trazem no seu bojo a ideia de inferiorização do outro. A partir de um conceito, alguém os vê enquanto classe social analisada e quantificada, medida, aferida apenas como destituída de recursos materiais. Ora, a vulnerabilidade é somente isso? Carimbar os discentes bolsistas de forma negativa é não trabalhar politicamente as possibilidades de superação dentro do nosso sistema social excludente. Precisamos realizar essa crítica, como forma de apontarmos para uma nova visão que trate a todos os estudantes com adjetivações, no mínimo, positivadas.

A inferiorização do outro não se dá somente via símbolo, mas também nas ações que os enxergam incapazes de superação se não lhes forem concedida as mesmas condições financeiras. É próprio dessa visão um apaixonado preconceito invertido e envergonhado, que não se alegra e não aceita a possibilidade de superação intelectual dos desiguais financeiramente. É assustadora a visão dos que acreditam que o estado brasileiro deve conceder uma mesada solidária e infinita aos discentes em condições que dizemos estão em “vulnerabilidade socioeconômica”, sem vincular a formação acadêmica.

A maior assistência é propiciar aos estudantes de graduação, especialmente os inseridos em programas de ações afirmativas nas universidades públicas, programas que almejem uma atuação em caráter de iniciação acadêmica, que é condição indispensável a sua formação, ao seu desenvolvimento, a superação dos entraves maiores ao seu crescimento intelectual e profissional. Envolver-se em projetos de pesquisa, em atividades de ensino, extensão e demais atividades complementares que sejam correlacionadas ao campo específico da sua formação, são ações propulsoras para o sucesso acadêmico discente.

A universidade pública se constitui hoje em um dos poucos espaços que municia uma parcela da juventude brasileira para o avanço social, particularmente após o advento das políticas de ações afirmativas. Políticas públicas afirmativas devem ser constituídas enquanto direitos: não é um favor, nem ajuda, nem prêmio. Também não é um direito que vira abuso, nem má-fé, nem exclusividade de pequenos sub-grupos, não é o espaço da inexistência de regras, ao contrário, para ser política pública é necessário estabelecer a existência de “normas”, “objetivos”, “princípios”. Se Pedro Demo argumenta que, em termos de pobreza, tudo é muito grave, principalmente se reduzirmos às análises a questões meramente economicistas, José Paulo Neto (2002), por sua vez, que somente “o conhecimento é constitutivo das ações e das determinações dos objetivos dos sujeitos sociais, da sua consciência social”. É imprescindível, pois, reiterar o papel do conhecimento como parte intrínseca das políticas públicas implantadas no Brasil a partir do PNAES – Plano Nacional de Assistência aos Estudantes de Ensino Superior. Somente assim, trabalharemos criticamente a possibilidade de superação como meta nas nossas ações cotidianas.

*Mário Resende é professor e ex-pró-reitor de Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
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