Brasileiros vão à Argentina para estudar medicina

Estimativas do setor privado apontam a presença de 2,5 mil alunos somente em Buenos Aires e até 15 mil nos países vizinhos do Mercosul

Vaga sem vestibular, mensalidade em torno de R$ 800, custo de vida barateado pela fragilidade do peso e a oportunidade de contato com outras culturas têm levado um número cada vez maior de estudantes brasileiros – acostumados a pagar até R$ 5 mil por mês e submetidos a um rigoroso processo seletivo – às faculdades argentinas de medicina.

 

Faltam números oficiais a respeito, em órgãos do Brasil e da Argentina, mas estimativas do setor privado apontam a presença de 2,5 mil alunos somente em  Buenos Aires e até 15 mil nos países vizinhos do Mercosul.

 

A maioria dos estudantes recorre à ajuda de empresas que fazem a intermediação com as universidades e agilizam a regularização de documentos. Uma delas, a paranaense Vive en Buenos Aires, começou em 2002 e hoje encaminha alunos brasileiros a 68 instituições de ensino médico na Argentina. Outro sinal da forte demanda brasileira – e do interesse argentino em explorar esse nicho – é a instalação de uma filial da Fundação Héctor Barceló em Santo Tomé, cidade vizinha à fronteiriça São Borja, no Rio Grande do Sul.

 

“Nos anos 90, recebíamos estudantes brasileiros, mas eram poucos e desatentos, sem vontade de aprender”, diz Hernán Aldana, professor de histologia da Universidade de Morón, na periferia de Buenos Aires. “Hoje há uma quantidade muito maior, talvez pelo câmbio favorável, e mudou o perfil. Na minha turma, os alunos são empenhados e buscam criar vínculos afetivos com o corpo docente, convidando-nos sempre para almoçar na casa deles”, descreve Aldana.

 

Dos 170 estudantes de medicina que cursam o primeiro ano em Morón, 48 são brasileiros – paulistas e goianos, principalmente. Na próxima temporada, a universidade (privada) pretende destinar até cem vagas a estudantes que vêm do Brasil. Felipe Nori, 18 anos, de Ribeirão Preto, prestou vestibular para a Unicamp e duas faculdades particulares do interior de São Paulo, no fim do ano passado. Não passou, pesquisou sobre o ensino na Argentina e decidiu fazer as malas. “Não quis perder mais um ano de cursinho”, admite.

 

Em vez de vestibular, os pretendentes a uma faculdade pública na Argentina fazem o chamado ciclo básico comum, conhecido como CBC, um curso pré-graduação que dura cerca de um ano. Para quem quer seguir medicina, há ênfase nas aulas de biologia e química.

 

Ao longo do curso, que já conta como primeiro ano de universidade, são aplicados exames regularmente. Só continua quem obtém nota mínima. Na Universidade de Buenos Aires (UBA), o curso de medicina é o mais concorrido: teve 5.986 inscritos em 2010. Em média, 20% desistem da carreira no próprio CBC, sem nem fazer todos os exames. Nas faculdades privadas, esse curso é mais rápido, em torno de três meses. Em muitas delas, os brasileiros conseguem até saltar a seleção, com uma prova para testar conhecimentos básicos.

 

A facilidade na obtenção de uma vaga pode virar dor de cabeça mais tarde. “Um dos erros mais comuns é entrar com visto de turista e renová-lo a cada 90 dias. Se o aluno não regularizar sua situação até o fim do primeiro ano, corre o risco de complicar a revalidação do diploma no futuro”, diz Kleber Rezende, fundador da Vive en Buenos Aires.

 

Outro transtorno possível é a carga horária. No Brasil, o Ministério da Educação exige um mínimo de 7,2 mil horas, enquanto boa parte parte das faculdades argentinas tem cerca de 6 mil horas na grade curricular. Por isso, tornou-se comum que as empresas especializadas em intermediar o contato entre os alunos brasileiros e as universidades locais façam um complemento “por fora”. A Isped, de São Paulo, oferece um pacote por R$ 1.200 mensais. Sem ele, o custo cai para R$ 850, que é apenas o pagamento da faculdade.

 

Além da vaga em uma instituição privada, esse pacote inclui aulas de espanhol na chegada e até o fim do primeiro semestre, e 3 mil horas adicionais durante o curso, em disciplinas cujo conteúdo varia muito conforme o país de ensino – como medicina do trabalho, legislação e código de ética. “Para facilitar a revalidação do diploma, reforçamos o conteúdo brasileiro, como parte da grade curricular e com professores vindo do Brasil”, diz Valdir Carrenho, coordenador pedagógico da Isped.

 

Para médicos paulistas, ensino dos vizinhos é ruim

 

O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) se diz preocupado com a formação de estudantes brasileiros no exterior. A entidade questiona a qualidade do ensino nos países vizinhos e cobra mais rigor do governo na revalidação do diploma. “É uma situação que não interessa ao nosso sistema de saúde e no qual o paciente, em última instância, sai como principal prejudicado”, diz Isac Jorge Filho, coordenador da comissão de pesquisa e ensino médico do Cremesp.

 

Jorge Filho evita generalizar, mas lembra que a impossibilidade de fiscalização dos cursos por autoridades brasileiras transforma em incógnita a formação dos futuros profissionais. “Alguns dizem que vão estudar no exterior porque é mais barato. Não sei, a minha impressão é de que vão mesmo porque não conseguiram passar no vestibular.”

 

Uma das maiores preocupações do Cremesp é com a suposta precariedade do ensino em algumas especialidades, além da falta de estrutura. “Chega a haver mil alunos por turma em Cuba. Sabemos de escolas na Bolívia em que os cursos teóricos são ministrados em garagens, literalmente. E a Argentina não tem as mesmas doenças tropicais que o Brasil”, diz Jorge Filho.

 

Ele reconhece que o ensino médico no Brasil “tem piorado sensivelmente”. Em outubro de 2009, um exame feito voluntariamente por 621 alunos do sexto ano de medicina no Estado de São Paulo teve resultados pouco animadores: 56% dos participantes foram reprovados, não tendo alcançado a nota mínima de 6 na prova objetiva. “Se as escolas fiscalizadas pelo MEC já são ruins, é preciso ser ainda mais cauteloso com as faculdades do exterior”, argumenta.

 

Para o coordenador do Cremesp, a falta de investimentos em laboratórios e no corpo docente costuma explicar o baixo custo das faculdades de medicina nos países vizinhos. Valdir Carrenho, diretor da Isped, empresa que assessora estudantes brasileiros em universidades argentinas, confirma o contraste de remuneração: enquanto um professor no Brasil ganha cerca de R$ 100 por hora/aula em uma universidade privada de prestígio, o pagamento na Argentina fica em 50 pesos (uns R$ 25).

 

Carrenho rejeita, porém, que esse seja um fator preponderante na diferença de custo. “Hoje, faculdade de medicina no Brasil virou comércio. Como há mais demanda do que oferta, quem tem curso preenche todas as vagas, a qualquer preço. Na verdade, a medicina argentina está um passo à frente da medicina brasileira”, afirma. Para ele, a reação do Cremesp e de outros conselhos regionais ocorre pelo desejo de “manter reserva de mercado”, com menos concorrência para os profissionais.

 

Novo exame para revalidar diplomas tem 632 candidatos

 

O governo brasileiro mudou as regras de revalidação do diploma de médico obtido no exterior. A primeira prova nacional para verificar os conhecimentos teóricos e práticos dos graduados fora do Brasil deverá ocorrer entre o fim de junho e o início de julho. Houve 632 candidatos inscritos, em 24 universidades federais credenciadas, com diplomados em 32 países.

 

A maioria se formou em faculdades de Cuba, da Bolívia e da Argentina – mas há casos de quem estudou em lugares bem mais distantes, como Rússia, Síria e Líbano. Será a primeira vez em que será aplicado o novo exame nacional definido pelos ministérios da Educação e da Saúde, em portaria publicada em setembro de 2009.

 

A diretora do departamento de gestão na educação da saúde do Ministério da Saúde, Ana Estela Haddad, explica que a mudança foi resultado de uma discussão de um ano e meio dentro do governo e com as entidades de classe. “A corporação médica foi muito resistente, mas entendemos que é um aperfeiçoamento”, avalia a funcionária.

 

Hoje o Brasil tem 181 cursos de medicina, públicos e privados, com cerca de 11 mil alunos que se formam por ano. Nas universidades federais, a demanda já ultrapassa cem candidatos por vaga em muitas delas. Por isso, a diretora admite que aumentou a procura de estudantes por faculdades no exterior. Mas não acha que isso seja necessariamente negativo. “Entre 25% e 35% dos médicos que exercem a profissão, nos Estados Unidos, se formaram em outros países. No Brasil, são apenas 2%”, afirma.

 

Haddad diz que qualquer universidade federal estava apta a fazer a revalidação do diploma, mas era um processo “excessivamente documental” e caro. “Há uma normativa do Conselho Nacional de Educação, mas que vinha sendo aplicada de forma muito variada por cada universidade”, conta. Segundo ela, gastava-se até mais de R$ 1 mil e demorava-se até cinco anos, pois faltam professores suficientes em algumas universidades para analisar tantos documentos.

 

As instituições brasileiras precisam comprovar que o curso no exterior teve duração de seis anos, carga horária mínima de 7,2 mil horas-aula e várias disciplinas obrigatórias. “Agora será taxa única de R$ 150, só para a universidade cobrir suas despesas”, diz. O objetivo é “trocar o foco da avaliação de documentos por um processo de avaliação da competência”.

 

Por enquanto, trata-se de um projeto-piloto, que não está assegurado depois de 2010. O governo fará uma análise da experiência. Isac Jorge Filho, do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), desconfia que o exame poderá dar um aval a graduados com má formação. “Por um passe de mágica, o aluno passa numa avaliação desse tipo? Ou ele é gênio, ou o nível da avaliação é muito baixo”, questiona Jorge.

 

(Daniel Rittner – Valor Econômico, 31/5)