Cinco, ou mais, reflexões sobre o Enem, artigo da reitora Malvina Tuttman

A universidade pública brasileira, depois de tantos anos de descompromisso oficial, atravessa momento único em sua história

AO LER o artigo "Cinco acusações contra o Enem" ("Tendências/Debates", 10/12), fui mobilizada por vários sentimentos. O primeiro deles surge do caráter determinado do texto de evidenciar apenas aspectos negativos do Exame Nacional do Ensino Médio -questionáveis, sob o meu ponto de vista-, o que é emblematicamente representado pelo pleonasmo do título. Qualquer acusação é sempre contrária a algo -ou, no caso do artigo, talvez as acusações não sejam necessariamente contra o Enem, mas contra o que ele eventualmente representa em termos políticos e/ou ideológicos.

Historicamente em nosso país, o acesso à universidade pública se deu por meio de processos seletivos sob a responsabilidade da própria instituição ou de fundações contratadas.

Além de submeterem os candidatos a uma maratona exaustiva de provas, os vestibulares não têm o objetivo primeiro de refletir sobre o desenho curricular do ensino médio. Sua função precípua é a de, apenas, selecionar alunos de acordo com o perfil considerado mais adequado a cada universidade.

O Enem surge com a finalidade de avaliar os alunos do ensino médio e, consequentemente, a qualidade desse nível de ensino. Sob essa perspectiva, a utilização do exame atende a duas finalidades: servir como mecanismo de avaliação dos postulantes ao ensino superior no Brasil e subsidiar reflexões pedagógicas que reorientem, de forma contemporânea, os rumos do ensino médio.

Partindo do princípio de que o Enem é legítimo para tal avaliação, por que não utilizá-lo como referência para o acesso único ao ensino superior do país?

A unidade nacional do exame, respeitando a diversidade e a universalidade de conhecimentos, não pode ser considerada, de maneira simplista, uma forma de centralização do poder.

Ao contrário, um exame único democratiza o acesso às várias instituições, não discriminando candidatos por condições geográficas, econômicas e/ou culturais. Se fossem priorizados temas regionais, o que seria de um candidato do Norte postulante a uma vaga no Sudeste?

Nesse caso, o critério da hegemonia cultural mencionada no artigo recairia sobre o regionalismo. Sob essa perspectiva, acredito que os aspectos universais devam ser priorizados num processo seletivo único nacional, para garantir a democratização do acesso a qualquer universidade.

Quanto à importância do respeito à diversidade cultural, entendo que devam ser respeitados e garantidos pela universidade os direitos à fruição, produção e circulação das diversas culturas existentes no desenvolvimento de projetos pedagógicos envolvendo ensino, pesquisa e extensão.

Concordo com o autor do artigo quando faz alusão à vasta experiência acumulada nas melhores universidades brasileiras no desenvolvimento de seus processos seletivos. No entanto, essa "riqueza acumulada" não foi suficiente para resolver a indesejável e histórica elitização do acesso à universidade pública do país.

O Enem -priorizando o raciocínio a partir de competências- traz maior possibilidade de acesso democrático, em forma de esperançosa latência. O foco se desloca do eixo de expertise em formulação de questões e assume dimensão mais complexa, que pretende contribuir com a reflexão sobre a construção de conhecimentos.

Como reitora de uma universidade federal e com a independência de pensamento que detenho, uma vez que fui eleita pelo voto da comunidade universitária e dos conselhos superiores, testemunho que é infundada a afirmação de que o Ministério da Educação induza as instituições federais a aceitarem o Enem como forma de acesso ao ensino superior no país.

A adesão das instituições resultou de processos coletivos de reflexão ocorridos entre os membros da Andifes (Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) e, principalmente, das reflexões no interior de cada instituição, sendo a definição de sua utilização decidida pelos conselhos superiores de cada universidade.

Finalmente, o sentimento de perplexidade me invade! Como pode um professor de uma universidade pública -local de resistência histórica e heroica a um regime de exceção- estabelecer qualquer analogia plausível entre dois momentos tão distintos vividos pelas universidades deste país?

Deixo, então, aos leitores um sentimento de esperança -a universidade pública brasileira, esse patrimônio incontestável do nosso país, depois de tantos anos de descompromisso oficial e de brutal desmonte, atravessa momento único em sua história, caminhando para a democratização do seu acesso, contribuindo com uma formação cidadã para a esperada justiça social do nosso país.
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MALVINA TANIA TUTTMAN , pedagoga, mestre e doutora em educação, é reitora da UniRio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro).

Folha de São Paulo, 15/12