Educação e Constituição, artigo de Fernando Haddad

UMA BOA maneira de julgar a atuação de um governante numa área específica é avaliar as mudanças constitucionais avalizadas por sua base de sustentação, sem a qual é impossível aprovar uma emenda constitucional, com ou sem o apoio da oposição.

O governo Lula aprovou, com o apoio da oposição, duas emendas constitucionais (nº 53 e nº 59) que alteraram significativamente oito dispositivos da maior relevância para a educação.

1) Obrigatoriedade do ensino dos quatro aos 17 anos. Nesse particular, nossa Constituição está entre as mais avançadas do mundo. Em editorial, esta Folha defendeu a seguinte tese: "Falta uma medida ousada, como estender a obrigatoriedade para todo o ensino básico, até a terceira série do nível médio". Cinco meses depois, a emenda constitucional promulgada vai além, ao garantir a universalização da pré-escola, sem o que a obrigatoriedade do ensino médio se tornaria pouco factível.

2) Fim da DRU da educação. A Desvinculação de Receitas da União retirava do orçamento do MEC, desde 1995, cerca de R$ 10 bilhões ao ano. Depois da tentativa frustrada de enterrá-la por ocasião da prorrogação da CPMF, em 2007, o Congresso finalmente pôs fim à DRU, valendo-se dos últimos três orçamentos de responsabilidade do governo Lula.

3) Investimento público em educação como proporção do PIB. O atual Plano Nacional de Educação (PNE 2001-2010) previra a "elevação, na década, por meio de esforço conjunto da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, do percentual de gastos públicos em relação ao PIB, aplicados em educação, para atingir o mínimo de 7%".

O dispositivo foi vetado, em 2001, com o seguinte argumento: "Estabelecer, nos termos propostos, uma vinculação entre despesas públicas e PIB, a vigorar durante exercícios subsequentes, contraria o disposto na Lei de Responsabilidade Fiscal".

A saída para o próximo PNE foi aprovar norma de hierarquia superior. Com a emenda constitucional nº 59, torna-se obrigatório o "estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do PIB".

4) Piso salarial nacional do magistério. O Pacto pela Educação, firmado em 1994 no Palácio do Planalto, previa a fixação de um piso salarial para todos os professores do país. Renegado, o compromisso, enfim, tornou-se realidade. Em 1º de janeiro de 2010, o piso deverá ser totalmente integralizado e observado por todos os Estados e municípios.

5) Fundeb. O Fundo da Educação Básica, que substituiu o Fundef, multiplicou por dez a complementação da União que visa equalizar o investimento por aluno no país, além de incluir as matrículas da educação infantil, do ensino médio e da educação de jovens e adultos, desconsideradas pelo fundo anterior, restrito ao ensino fundamental regular.

6) Repartição e abrangência do salário-educação. Os recursos do salário-educação, mais do que duplicados, antes destinados apenas ao ensino fundamental, podem, agora, financiar toda a educação básica, da creche ao ensino médio, e sua repartição passou a ser feita entre Estados e municípios pela matrícula, diretamente aos entes federados.

7) Ensino fundamental de nove anos. As crianças das camadas pobres iniciam agora o ciclo de alfabetização na mesma idade que os filhos da classe média, aos seis anos, garantindo-se o direito de aprender a ler e escrever a todos.

8) Extensão dos programas complementares de livro didático, alimentação, transporte e saúde escolar, antes restritos ao ensino fundamental, para toda a educação básica, da creche ao ensino médio. Pode soar inacreditável, mas, até 2005, os alunos do ensino médio público não faziam jus a nada disso.

Mesmo que fosse possível deixar de lado as reformas infraconstitucionais no nível da educação básica, profissional e superior enfeixadas no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), a profundidade dessas mudanças estruturais já justificaria um governo.

No tempo certo, as novas gerações se debruçarão, com o distanciamento devido, sobre um evento tão cheio de significado histórico quanto a presidência de Lula, suas semelhanças e colossais diferenças, e hão de notar o sentido progressista em que foi reescrito o capítulo consagrado à educação na nossa lei maior.
________________________________________
FERNANDO HADDAD, 46, advogado, mestre em economia e doutor em filosofia, é professor de ciência política da USP e ministro da Educação.

Folha de São Paulo, 22/11