A Embraer e o risco de ‘downgrade’ tecnológico

A venda da área de negócios de aviação comercial da Embraer para a americana Boeing, cujos termos gerais foram apresentados no memorando de entendimento, tem sido justificada como necessária para ampliar as escalas empresariais. Ao mesmo tempo, a venda também tem suscitado preocupação
no que diz respeito aos riscos associados ao desenvolvimento tecnológico futuro da Embraer e seus impactos sobre a cadeia de fornecedores domésticos e a geração de empregos no Brasil.

Na dimensão tecnológica observam-se duas importantes tendências globais. A primeira é o significativo aumento das atividades inovativas para enfrentar os desafios e as oportunidades da revolução tecnológica em marcha, mais conhecida como Indústria 4.0. Constata-se que as novas tecnologias estão trazendo grandes impactos sobre a estrutura da indústria, particularmente sobre os setores mais intensivos em tecnologia, como é o caso da indústria aeroespacial e de defesa (A&D).

Segundo informações da Industrial Research and Innovation Monitoring and Analysis (IRIMA) da Comissão Europeia, os gastos em P&D cresceram 50% nos últimos dez anos. O indicador de intensidade tecnológica (relação investimentos em P&D e receita líquida) cresceu de 3,2% para 4,1%. A segunda tendência é o elevado grau de concentração das atividades inovativas em termos de países, setores e empresas. O gasto em P&D das 2,5 mil maiores corporações (US$ 815 bilhões em 2016/2017) representou 55% do gasto total, público e privado, em P&D no mundo e 90% de todo gasto empresarial em P&D. Apenas sete setores (automobilística, químico, complexo de saúde, produtos e serviços de TIC´s, máquinas e equipamentos e aeroespacial e defesa) foram responsáveis por 87% dos gastos de P&D. Cem empresas foram responsáveis por mais de 50% dos gastos em P&D, enquanto 10 economias são sede de 87% das empresas (2.165 empresas) e concentram 90% dos gastos em P&D. Nove empresas
brasileiras foram responsáveis por insignificantes 0,25% dos gastos de P&D do grupo de 2,5 mil empresas. A Embraer é uma delas.

O setor aeroespacial e de defesa (A&D), considerado estratégico e de alta tecnologia, representado na amostra por 49 empresas, investiu US$ 25 bilhões em P&D (expansão de 30% nos últimos dez anos) e gerou uma receita líquida de US$ 550 bilhões com 1,5 milhão de empregos em 2016/2017. O indicador de intensidade tecnológica (IIT) é de 4,3%. Esses indicadores sugerem um contexto internacional bastante dinâmico e inovativo, o que explica a preocupação com o desempenho competitivo futuro da Embraer.

A Embraer investiu em atividades inovativas uma média anual de US$ 400 milhões no quinquênio 2012-2016, contra US$ 150 milhões no quinquênio 2007-2011. O IIT da empresa ampliou-se de 2,8% no primeiro quinquênio para 7,2% no segundo e superou em muito o indicador do setor A&D, de 4,3%. Esse esforço inovador propiciou o desenvolvimento e o recém-lançamento da família de jatos comerciais E2, que incorpora os principais avanços tecnológicos trazidos para esta categoria de aeronave, sendo chancelado pelo mercado.

Há o risco que a Embraer torne-se apenas parte da atividade da Boeing e desenvolva cada vez menos
inovações Na recente feira aeronáutica de Farnborough, na Inglaterra, 300 novas encomendas foram contabilizadas, em novos negócios (173 vendas e 127 opções de compra) que podem somar mais US$ 15 bilhões à carteira de encomendas da empresa brasileira. Ademais, estes investimentos em P&D contribuíram para o desenvolvimento do KC-390, um jato de transporte militar que estará praticamente sozinho em sua categoria. Estes novos lançamentos, somados aos investimentos em modernização e automatização da estrutura fabril, colocam a Embraer em condições competitivas em relação aos seus
principais concorrentes, pelo menos no médio prazo.

Por que a venda das atividades de jatos comerciais da Embraer para a Boeing representa um elevado risco para o desenvolvimento tecnológico futuro da empresa e de sua cadeia de fornecedores instalada no país? Enquanto, no âmbito das cadeias globais de valor, observa-se uma maior participação de empresas de países emergentes na produção e no comércio mundial, no caso das atividades inovativas a tendência é oposta. As grandes corporações globais têm reforçado seus ativos tecnológicos e mercadológicos e focado nas atividades que geram maior valor agregado e/ou permitem controlar e subordinar os demais atores da cadeia de produção e fornecimento, possibilitando a captura de parte
substantiva do valor gerado.

Essa estratégia explica as tendências anteriores de expansão e concentração das atividades inovativas. As outras áreas de negócio que permanecerão sobre controle da Embraer (aviação executiva e defesa) também correm um elevado risco de retrocesso na capacidade de desenvolvimento tecnológico em razão da perda da intensa sinergia que possuem com a área de aeronaves comerciais.

No setor A&D, os ativos tecnológicos são estratégicos. Por isso, a necessidade de elevados gastos em atividades inovativas e a importância de desenvolver as capacitações tecnológicas, sobretudo em engenharia. De acordo com o memorando de entendimentos da operação entre as duas empresas as atividades da aviação comercial serão integradas à cadeia geral de produção e fornecimento da Boeing, dentro de sua estratégia de verticalização da estrutura produtiva. Há o risco que a Embraer torne-se somente uma parte da atividade produtiva e comercial da Boeing e, cada vez menos, desenvolva as
atividades inovativas. Este risco é corroborado pela carência de profissionais que a Boeing possui em sua área de desenvolvimento, indicando que há um grande interesse em absorver a capacidade em engenharia da Embraer.

Neste contexto, a Embraer se manterá eficiente como empresa de base produtiva e comercial, mas com reduzidas atividades tecnológicas. Além da crescente dependência de transferência de tecnologias de produtos e processos desenvolvidas no exterior, a Embraer terá uma inserção subordinada nas cadeias de produção e fornecimento da Boeing, com a consequente ampliação do conteúdo importado, o que terá impactos negativos para a cadeia de fornecedores domésticos e a geração de empregos. Em síntese, a venda é um ótimo negócio para a Boeing, mas um retrocesso para a Embraer e o país.

Fernando Sarti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia
Industrial e da Tecnologia (IE-NEIT).

Marcos José Barbieri Ferreira é professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp e pesquisador
do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia.