Entre o Xingu e a Universidade – 50 anos

O Projeto Xingu nasceu há cinco décadas, a partir de um encontro entre o professor Roberto Geraldo Baruzzi – especialista em Medicina Tropical pela Universidade de São Paulo e doutor em Medicina Preventiva pela Escola Paulista de Medicina/Unifesp – e Orlando Villas Bôas, então diretor do Parque Indígena do Xingu (PIX). O sertanista, em visita à Escola Paulista de Medicina, propôs ao médico, que já havia participado de várias expedições a regiões indígenas, organizar uma equipe para avaliar as condições de saúde dos povos que viviam na área do parque.

Assim começou um projeto
À época, a falta de assistência médica e sanitária regular acentuava o risco de extinção dos cerca de 1.500 índios, distribuídos em 16 etnias que habitavam os 32 mil km2 da região. A EPM criou um programa de extensão pioneiro na linha de assistência médica, ancorado em três pilares: cadastramento médico, imunização e abertura do Hospital São Paulo como retaguarda de média e alta complexidade. No início, as viagens a campo eram realizadas quatro vezes por ano, e a primeira delas se deu em 1965, com oito integrantes levados pela Força Aérea Brasileira. O principal objetivo era, então, fazer o mapeamento da situação da saúde e dos principais problemas enfrentados pelas populações locais. Deu-se prioridade a campanhas de vacinação, além da assistência médica, curativa e preventiva, com atendimento às queixas e acompanhamento de gestantes e recém-nascidos.

Houve, ao longo dos anos, uma troca consistente de saberes e conhecimentos, em um ambiente político nem sempre favorável – pois o projeto nasceu quando o país estava submetido ao regime militar, cujas políticas em relação aos povos originários também foram marcadas pelo autoritarismo, pelo total desrespeito a seus direitos e pela busca desenfreada de territórios vistos como oportunidade de negócios milionários, abertos ao capital brasileiro e transnacional.

Apesar de todos os obstáculos, e graças ao empenho de professores, cientistas, pesquisadores, antropólogos, sociólogos, técnicos e estudantes da EPM (depois Unifesp), bem como de todos os envolvidos, oriundos de outras entidades e instituições – incluindo, é claro, os irmãos Villas Bôas, as comunidades indígenas e todos os trabalhadores que participaram e participam desse imenso esforço coletivo -, o projeto floresceu e atingiu sua plena maturidade. Tem como eixos de trabalho a formação de indígenas e não indígenas na área da saúde, o protagonismo de todos os atores na produção da saúde e a construção coletiva de estratégias de enfrentamento dos velhos e novos problemas de saúde que afetam as comunidades xinguanas.

Passados 50 anos, a equipe que atua no projeto não é tão grande, sendo formada por 17 pessoas entre médicos, enfermeiros, nutricionista, cirurgião-dentista, educador, historiador e fotógrafo, além do corpo administrativo. Porém, realizam um projeto de grandes proporções. Ao todo, mais de 500 pessoas já participaram das viagens ao Xingu desde a criação do projeto. Entre as principais conquistas do programa, estão o aumento da expectativa de vida dos índios, a queda da mortalidade infantil e a erradicação de doenças como sarampo, catapora, poliomielite e difteria. Além disso, os casos de malária, a principal epidemia que assolava esses povos, são muito raros e, quando ocorrem, não evoluem para óbito.

Mas, apesar de todos os avanços, há ainda muito por fazer. Hoje, a sobrevivência dos povos xinguanos enfrenta a ameaça representada pelas novas doenças provenientes da mudança no modo de viver e nos hábitos alimentares como obesidade, dislipidemia, diabetes e hipertensão, além do paradoxal aumento da desnutrição. Consequentemente ampliam-se os casos de óbito por doenças cardiovasculares.

No Congresso Nacional, tramitam pelo menos 50 projetos legislativos que retiram direitos constitucionais dos indígenas. Além disso, estudos feitos por entidades especializadas mostram que hoje são tocadas mais de cem obras em territórios indígenas (incluindo hidrelétricas, gasodutos, estradas, ferrovias etc.), das quais um terço ocorre em territórios onde ainda existem grupos indígenas isolados e de contato recente, considerados de alta vulnerabilidade.

Esse quadro geral mostra a extrema relevância do Projeto Xingu. Temos todas as razões para acreditar que, se o projeto não existisse, os impactos decorrentes do contato com nossa sociedade sobre a saúde dos xinguanos seriam muito piores. Ao longo das cinco últimas décadas, conseguimos mostrar, sobretudo, que há alternativas, quando se trata da defesa e preservação de comunidades indígenas, desde que sejam lançadas bases sólidas e democráticas de cooperação entre a universidade, o Estado e as próprias comunidades envolvidas.

São muitos os desafios; porém, é um trabalho que nos enche de orgulho. Um feito que devemos celebrar e que espelha o que uma universidade pública pode realizar.
Soraya Smaili – Reitora da Universidade Federal de São Paulo