Este homem tem alguma chance?

Mesmo os bajuladores admitem que, desta vez, Luiz Inácio Lula da Silva exagerou. No esforço para lançar um candidato capaz de tirar a campanha do PT da periferia e agradar a uma fatia da desconfiada classe média paulistana nas eleições para a prefeitura no ano que vem, Lula resolveu patrocinar um concorrente que jamais pisou em chão de terra para pedir votos entre os humildes, não toma cachaça em balcão de boteco nem emociona plateias quando empunha um microfone.

Aos 48 anos, ministro da Educação desde 2005, Fernando Haddad entrou na luta para conquistar a candidatura num confronto com quatro concorrentes internos, entre eles a senadora Marta Suplicy, líder nas pesquisas de intenção de voto. Culto, bem-nascido, o ministro tem uma militância de gabinete. Sua erudição impressiona nos meios acadêmicos. Mas seu charme é incerto perante os 4,2 milhões de eleitores que precisa seduzir para ganhar um pleito dificílimo. Alto, em boa forma, o pré-candidato de Lula tem um jeito de galã maduro de novela, emprega palavras educadas e exibe modos suaves.

Embora a pré-campanha esteja ainda no começo, os sinais de crescimento de Haddad dentro do PT já permitem pensar que ele tem chance de sair vitorioso na disputa interna. O número de vereadores simpáticos a sua candidatura não para de crescer, enquanto emagrece o lote daqueles que preferem qualquer um de seus adversários. A adesão de deputados estaduais e federais tornou-se visível e até despudorada. Ao declarar apoio a Haddad, a presidente Dilma Rousseff eliminou qualquer possibilidade de uma disputa que poderia ter importância nacional. Haddad planeja abandonar o ministério em dezembro para dedicar-se em tempo integral à luta pela prefeitura. Já decidiu que não quer ir embora no limite legal, março de 2012, para não dar a impressão de ser um político vulgar, desses que se agarram ao cargo até o último dia.

Na mais recente pesquisa com eleitores do país inteiro, Haddad acabou na posição de ministro mais bem avaliado do governo Dilma. Em outros levantamentos, na era Lula, nunca ficou abaixo dos três primeiros. O fato de ser um ministro com uma longa vida de seis anos no cargo ajuda. Seu desempenho é até surpreendente para quem acumulou três desastres públicos durante sua gestão: o furto de provas num exame do Enem, uma troca de cabeçalho em outra prova e um kit contra a homofobia que levou Dilma Rousseff a dar-lhe uma bronca pública. Pelo jeito distanciado e pelo olhar um tanto entediado que dirige a interlocutores, Haddad transmite a impressão de que não guarda um minuto de dúvida sobre a qualidade de seu trabalho em Brasília. “A diferença é fazer o que você gosta”, afirmou, durante um almoço com frango, panquecas e salada numa sala de reuniões do ministério, em Brasília. “Não vim para cá para pensar em outra coisa, num projeto pessoal. Apenas em educação.”

Quando se pergunta a Haddad por que foi escolhido por Lula para a dificílima eleição paulistana, ele emprega a linguagem clássica do ex-presidente. “Lula é um olheiro”, afirma. “Lula até levou amigos para o ministério, mas dispensou quem não teve bom desempenho.” Haddad chegou ao governo Dilma como parte da cota Lula de ministros, aqueles que “tinham” de ficar em seus cargos, categoria da qual faz parte, também, o ministro da Fazenda, Guido Mantega.

Poucos meses depois da posse, Dilma mostrou de forma muito bem-humorada a Fernando “Tinha que Ficar” Haddad que apoiava seu projeto de tentar a sorte nas urnas paulistanas. Numa conversa a três no Planalto, o ex-ministro Roberto Mangabeira Unger resolveu passar a limpo uma fofoca de corredor e perguntou à presidente: “Como é essa história de que o Haddad vai ser candidato a prefeito de São Paulo?”. Dilma respondeu sorrindo sem parar: “É… Ele vai ser o prefeito de São Paulo”. Haddad está convencido de que a reação da presidente confirma que as relações entre Lula e Dilma são francas e cordiais e que os dois costumam conversar demoradamente antes de tomar decisões políticas. Os adversários de Haddad asseguram que o convite para tirá-lo do ministério provocou alívio no Planalto, onde ele e Dilma cultivam relações tensas.

Numa definição que guarda aspectos otimistas e pessimistas, Haddad começa a ser chamado de Dilma 2. Em sua companhia, Lula e uma parcela crescente de petistas alimentam a esperança de repetir, em 2012, a façanha de 2010, quando a “ex-poste” Dilma chegou ao Planalto. A dúvida é saber se o prestígio nacional de Lula pode ser igualmente infalível numa disputa municipal, que tem outro horizonte, outra história e outro debate. A última vitória do PT em São Paulo ocorreu há três eleições. Dilma recebeu 47% dos votos no segundo turno, patamar razoável, mas insuficiente para vencer em 2012. Quando o assunto envolve disputas municipais, o PT não obtém vitórias fáceis nem em São Bernardo, o berço de tudo.

Outra pergunta é pós-eleitoral. Como um candidato sem raízes políticas proprias governará uma cidade com um sistema político poderoso, estruturado e agressivo? Parte dessa questão é saber se Lula exercerá seus conhecidos superpoderes para influir na nomeação de secretários e discutir o cotidiano da administração. Questionado sobre o assunto, Haddad diz que não acredita nessa hipótese. “A eleição municipal é diferente, envolve outra realidade, mais distante.”

Parte da resistência de uma fatia de petistas de São Paulo ao projeto Haddad alimenta-se da convicção de que Lula prepara uma mudança no perfil do PT na maior cidade brasileira, deslocando lideranças tradicionais para consolidar uma legenda a sua imagem e semelhança. Soldados e generais do ex-presidente têm ocupado posição de destaque nas articulações em torno de Haddad. O próprio Lula assumiu a tarefa de conduzir as negociações mais delicadas. Dentro do PT, tem-se como certo que ele terá uma voz importante na definição de questões estratégicas, como a escolha do candidato a vice. Na semana passada, após um jantar de graúdos em São Paulo, o empresário Josué Alencar, dono da Coteminas e filho do vice de Lula, José Alencar, começou a ser visto como um possível candidato a vice de Haddad, repetindo uma aliança eleitoral e também sentimental.

Lula cogitou lançar Haddad para disputar o governo do Estado, no ano passado, mas a ideia não prosperou. As conversas sobre a prefeitura ocorreram em março. Sem muita cerimônia, Lula chamou Haddad. Disse que chegara à conclusão de que o PT precisava de um nome novo para disputar a eleição e que não via candidato melhor. Haddad conta que nesse processo aprendeu que em política “tudo é feito de maneira informal”. “Não é uma conversa em torno de uma mesa, com uma pauta definida. O Lula teve uma ideia, conversou com a Dilma e me fez o convite, sem aviso prévio”, diz. “Todo convite também pode ser retirado, sem aviso.”

Haddad formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que tem uma lista longa de ministros que vem dos tempos do Império e ajuda a entender nossa fama de país dos bacharéis. Pós-graduado em economia, acumulou artigos repletos de referências a Karl Marx. Passou a se preocupar a fundo com educação a partir da leitura do filósofo alemão Jürgen Habermas, um dos mestres da Escola de Frankfurt, matriz de um pensamento conhecido como “marxismo cultural”. Foi assim, diz ele, que descobriu os pragmáticos americanos, sua principal influência para pensar o ensino público.

Num partido em que tendências internas têm uma importância que surpreende quem está de fora, Haddad integra a corrente Mensagem, a mesma do governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, e do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo. São políticos com ideias mais moderadas e um poder menor de mobilização do movimento popular. Dentro do PT, são chamados ironicamente de “nossos udenistas” pela frequência com que levantam questões éticas.

A disputa pela candidatura coloca Fernando Haddad e Marta Suplicy em campos opostos pela terceira vez em dez anos. Quando Marta era prefeita, Haddad ocupava um cargo no segundo escalão da Secretaria de Finanças. Por três vezes, fez chegar à prefeita seu interesse em assumir a Secretaria de Educação, que teve quatro titulares em quatro anos. Foi recusado nas três. Pouco depois, era apenas ministro interino da Educação em Brasília, quando Marta cobiçou o posto. Haddad ganhou.

Agora, ele quer o apoio de Marta numa acrobacia que pode ser mortal na carreira da ex-prefeita. Haddad precisa da bênção de Marta para pedir votos em toda parte. Sem articulação dentro do partido, em boa parte em função de seus próprios erros, Marta ainda é o nome mais popular do PT na cidade. Deixou obras e realizações que eleitores lembram e aprovam. Nas aparições na periferia, Haddad mostrou que tem o que aprender. Em vários debates, apresentou-se como um dos inventores dos CEUs, centros educacionais que integram a herança de Marta. Embora Haddad tenha tido um papel real na criação dos CEUs, essa postura gerou antipatias gerais além de provar cenas de mau humor explícito por parte da ex-prefeita. Mais recentemente, Haddad mudou o discurso e já até elogia a ex-prefeita: “Os méritos são da Marta”.