Fora de hora e de lugar

Repetindo seu repertório de ataques à imprensa nacional e indicações personalistas impostas ao PT, Lula volta à cena para ungir Haddad

Haverá de ser dos mais moderados o interesse da população de Goiânia pela sucessão à prefeitura paulistana. É também pequena a pertinência de um discurso de apoio a pré-candidato petista num encontro que reúne estudantes de variadas filiações partidárias.

Do mesmo modo, reduz-se a uma pequena claque de militantes o número dos que sentem saudades dos ataques à imprensa feitos por Luiz Inácio Lula da Silva durante seu governo.
Cuidados com a adequação da oratória, atenções à pertinência geográfica e respeito à liberdade de expressão nunca foram, todavia, o forte do ex-presidente. Não seriam mais fortes agora, quando toda ocasião para voltar aos palanques parece reacender a vocação messiânica e autoritária.
Foi assim que, no Congresso da União Nacional dos Estudantes, Lula resolveu chamar de “babaca” o jornalista que considere fraca a presidente Dilma Rousseff.
Apostou na confusão, é claro: o vigor da personalidade da atual chefe do Executivo não é idêntico ao de sua capacidade política para resistir com êxito às forças fisiológicas que lhe dão sustentação. Capacidade política que parece especialmente duvidosa, aliás, quando se recorda que a candidatura da atual presidente só teve sucesso ao nascer de uma indicação do bolso do colete lulista.
Eis que Lula se apronta, agora, para outro “dedazo” -termo que, na política mexicana, designa a escolha imperial de candidatos. O ex-presidente prefere o atual ministro da Educação, Fernando Haddad, aos outros aspirantes petistas à Prefeitura de São Paulo, a ex-prefeita Marta Suplicy e o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante.
Não faltam prestígio e qualidades intelectuais a Haddad, cuja reputação administrativa, contudo, saiu arranhada de recentes fiascos nas provas do Enem e no funcionamento do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para candidatos a vagas em universidades federais.
Sem dúvida, trata-se de um nome menos experiente, mas também com menor rejeição que o de Marta Suplicy. Já Aloizio Mercadante não foi capaz ainda de fazer com que seus poucos meses no ministério mitiguem o desgaste de sua tíbia atuação parlamentar.
Não cabe à Folha, é óbvio, pronunciar-se sobre o teor de decisões internas ao PT. Só se pode observar, entretanto, que em qualquer partido político seria mais saudável -pelas ocasiões de debate público que proporciona- a realização de prévias para a escolha de candidatos.
A exemplo do que acontece no PSDB e no PMDB, porém, parece prevalecer no PT um sistema de indicações de cima para baixo. Com o agravante de que o personalismo de Lula, sem paralelo nas outras agremiações, enseja sempre manifestações de uma concepção atrasada de democracia.

Fabricando o Enem

Concluiu-se que distinguir alunos e escolas por um sistema de notas fica mais fácil. E mais distorcido

Tem um sujeito americano, meio caipira, que manda no mundo do vinho francês. Até 15 anos atrás, soaria risível. Robert Parker Jr., que nem gostava de vinho, achou que o sistema subjetivo que falava em gosto de lápis molhado e amora podre estava difícil demais. Fez a coisa americana: inventou uma pontuação. Hoje, ninguém manda como ele nesse ramo.

O problema é que apareceu o vinho “parkerizado”, que manipula taninos e açúcar para ficar do jeitinho que o Parker gosta. O Enem, como o vestibular, é “parkerizado”. Concluiu-se que é necessário um sistema de notas para distinguir alunos e escolas. Assim tudo fica mais fácil. E distorcido. Lembro dos processos de admissão quando resolvi fazer mestrado. Nos EUA, labutei para tirar boa nota nos exames e não fiz entrevista.

Na Universidade de Oxford, na Inglaterra, disseram-me que não havia exame e que precisava achar um professor que me quisesse como aluno! Foi o que fiz, e “entrei” porque um senhorzinho que me encontrou num pub simpatizou com minha tese. “Parkerizadas”, as escolas se transvestem com boas notas, e isso é uma fraude intelectual.

Algumas das mais bem pontuadas fazem um funil danado dos dois lados, o de professores e o de alunos. Selecionam vetustamente (não é vestibulinho, mas é similar) os alunos para garantir material bom de prova. Do lado dos professores, fazem uma seleção direcionada. Depois, primam por simulados que visam exatamente treiná-los no que costuma cair nas provas.

Ora bolotas, assim qualquer um faz. É, aliás, um vexame que tirem nota 6 no Enem. Qualquer nota menor que 10, com esse preparo “parkerizado”, é um fracasso. As escolas públicas, que não podem escolher alunos e professores, não podem concorrer com isso.

A solução está na modernidade: fazer com que alunos decorem fórmulas, datas e fatos é de uma bizantinice primorosa. As provas têm, urgentemente, de ser feitas com notebook à disposição. As questões devem se concentrar na capacidade de questionar, procurar e interpretar, abolindo de vez esse caminho emburrecedor da vestibulice.

Impera a preguiça institucional e a pressão anacrônica dos pais, resultando em soluções antigas e doentes.

Há muita vinha de qualidade Brasil afora, e certamente não está reservada às elites que procuram capital social e enquadramento nas escolas que fabricam garrafas para o Enem.

É vergonhoso fazer tanta preparação para algo que sequer tangencia o mundo do trabalho. Dessas uvas nativas poderia vir muito vinho de qualidade, com mesclas criativas e importantes. Deixemos o Parker para trás. Mirar nota, como sabemos, não é para francês -é para inglês ver.

RICARDO SEMLER, 52, é empresário. Foi scholar da Harvard Law School e professor de MBA no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts). Foi escolhido pelo Fórum Econômico de Davos como um dos Líderes Globais do Amanhã. Escreveu dois livros (“Virando a Própria Mesa” e “Você Está Louco”) que venderam juntos 2 milhões de cópias em 34 línguas. Escreve a cada 14 dias neste espaço.