Liberdade Direitos Humanos e Democracia, artigo do reitor Rômulo Polari

O mundo em que vivemos, na sua realidade social, política, econômica, científica, tecnológica, artística e cultural, é uma invenção humana. Certamente, o instinto de sobrevivência e desenvolvimento foi o fundamento necessário ao êxito histórico desse processo milenar de criação. Mas a condição suficiente para tanto foi o exercício do poder da inteligência. Sem isto, a frágil espécie humana, na sua concepção física, teria perecido, diante das adversidades típicas dos primórdios de sua existência.

Esse mundo que inventamos é uma espécie de universo formado por conteúdos e verdades de validade historicamente relativa. Assim são, portanto, os modos de produção, as formações sociais, os sistemas políticos, o conhecimento das ciências sociais e da filosofia, os princípios de justiça, direito, liberdade, igualdade, etc. As suas formas de existência objetiva e subjetiva são cada vez mais complexas. É preciso saber ir além das aparências, para conceber, na essência, as suas razões de ser.

No plano da vida socioeconômica, nos seus aspectos técnico-materiais, organizacionais e institucionais, as contribuições de Karl Marx, no século XIX, foram magistrais. À luz do seu Materialismo Histórico e da sua Dialética Materialista, passamos a dispor de uma rigorosa concepção científico-filosófica do desenvolvimento histórico do capitalismo, rumo à autossuperação. No seu conteúdo essencial, o capital seria a síntese das relações sociais de produção fundadas na submissão, alienação e exploração das classes trabalhadoras. Esse é o Marx que ficou para a história, e não o da irrazoável Ditadura do Proletariado.

Na área dos direitos humanos e democracia, Norberto Bobbio foi um dos mais importantes criadores científicos e filosóficos do século XX. Bobbio conseguiu aliar qualidade teórico-metodológica e aplicação prática. Os seus trabalhos voltam-se ao entendimento do conteúdo e forma da liberdade, do direito e da democracia. A versão avançada de suas idéias constitui a síntese lógico-histórica dialética desses aspectos básicos da sociedade humana atual.

Histórica e conceitualmente, a liberdade nasceu como liberdade liberal e se desenvolveu como liberdade democrática e desta à liberdade positiva. A liberdade liberal traduz a faculdade do ser humano realizar ou não certas ações, sem impedimentos externos. A liberdade democrática baseia-se na liberdade autônoma da vontade, no sentido da autoimposição de normas. Valem aí as regras da maioria democrática, para legitimar a autorregulamentação. Cada indivíduo, através do todo social do qual é parte, pode e deve participar direta ou indiretamente do processo de criação de leis impositivas a si próprio. A liberdade positiva tem seus fundamentos na aquisição da capacidade econômica de satisfazer as necessidades materiais e espirituais essenciais, sem o que as liberdades liberais e democráticas seriam inexeqüíveis.

Interrelacionado ao desenvolvimento da liberdade, houve um correspondente desenvolvimento dos direitos do homem. Os direitos humanos nasceram com os direitos individuais limitadores do poder do Estado, em favor da liberdade liberal, e se desenvolveram como direitos políticos afirmadores da liberdade democrática e, depois, como direitos sociais viabilizadores da liberdade positiva e das liberdades em geral. Contemporaneamente, esses direitos ganharam existência positiva, na forma de sistemas jurídicos dos Estados nacionais, protegidos nas Constituições. A sua validação internacional vem sendo crescente, através de cartas de direitos humanos promulgadas por fóruns e órgãos mundiais que têm os Estados nacionais como membros.

Quanto mais democráticas as sociedades mais exeqüíveis os direitos humanos. A questão maior concentra-se nas dificuldades de se universalizar a democratização dos direitos sociais aos cidadãos e cidadãs. Afinal, como pensar no exercício contemporâneo da cidadania, se as pessoas não resolverem as suas necessidades de educação, saúde, moradia, condições sanitárias, segurança, emprego e renda?

Não basta avançar na criação de direitos sociais e humanos e incluí-los nos sistemas jurídicos constitucionais dos Estados nacionais. Essa condição necessária é insuficiente, se a Justiça é pouco acessível, lenta e inoperante para as pessoas comuns, e se as despesas e os investimentos do poder executivo estatal não se pautarem pelo atendimento dos direitos sociais constitucionalmente garantidos.

Para os fins práticos, não faz sentido pensar os Estados democráticos nacionais como instituições abstratas. Concretamente, eles são a síntese da atuação dinâmica de forças sociais, políticas e econômicas muito heterogêneas e desiguais. Os descolamentos ou distanciamentos da atuação dos órgãos do Estado, em relação ao atendimento dos direitos sociais básicos das pessoas política, social e economicamente mais débeis, não acontecem por acaso. Esse Estado real sempre está a serviço das causas que, consideradas palatáveis pelo jogo democrático, são eleitas como prioritárias.

Essa insuficiência do Estado democrático, na efetivação dos direitos sociais e humanos do homem, historicamente, contribuiu, também, para a não construção de laços morais e éticos indispensáveis a uma razoável coexistência social. Criou-se um estranho mundo inspirado no fundamentalismo dos mercados. A apologia à realização dos instintos passou a ser a tônica do comportamento pessoal. A busca do prazer a qualquer custo tomou a cena. A sociedade global floresceu radicalmente voltada para o consumo, o dinheiro e a acumulação de riqueza, ao lado da indignidade social.

Como se vê, fazem pleno sentido os caminhos contemporâneos aos quais nos conduzem os ensinamentos de Bobbio. Por aí sabemos que o problema dos direitos do homem não é mais o de fundamentá-los, mas sim o de garanti-los e protegê-los.

Rômulo Soares Polari é reitor da Universidade Federal da Paraíba