Mamãe, passei em Medicina!

Fiz Ensino Médio em Escola Técnica. Nunca entendi a mitose e a meiose. Não sei a diferença entre eucariontes e procariontes, Darwin, Mendel e seus amigos não me são próximos. Tudo que sei de cromossomos e DNA é o que leio em jornais e revistas.

Ainda assim consegui aprovação em Medicina na UFCSPA através do famigerado Enem. Como? “Chutei” com precisão? Não, ao contrário, errei praticamente todas as questões de Ciências Biológicas. Ah, em compensação eu tive o extremo mérito de entender que a foto de um jogador parado fora da quadra com uma bola de vôlei significa que ele vai sacar e também percebi a foto do Mr. Bean no quadro da Mona Lisa. É sim, eu acertei estas! (e para todos que ainda não conhecem a prova do Enem, fica o convite para que o façam, visitem o site do Inep).

A primeira incoerência é que o MEC defende ardorosamente o Enem como substituto do sempre combatido vestibular e usa aquele para endossar o ingresso numa respeitada faculdade de Medicina de alguém que não sabe a diferença entre o lisossomo e o ribossomo, preterindo vários estudantes muitíssimo mais bem preparados e com vocação para a área médica.

A segunda incoerência é que tenha sido Matemática a disciplina decisiva para a aprovação. Para postulantes a uma vaga de Medicina, a Matemática deveria ser menos importante que a Biologia, não? Mas aqui também cabe uma advertência aos estudantes gaúchos, se me permitem: a Matemática cobrada no Enem é extremamente básica, os tópicos de Ensino Médio mal são tangenciados na prova. Regra de três e alguma interpretação de gráficos já são suficientes para alavancar uma boa nota.

É preciso também que se evidencie publicamente a lotérica correção das 4 milhões de redações do Enem num prazo curto. Quem não dá sorte nesse quesito e busca vaga num curso de alta concorrência, como Medicina, vai precisar esperar mais um ano para apostar suas fichas. A prova simples e fácil não é boa para quem procura esses cursos. Espreme as notas na ponta de cima, torna a nota da redação muito mais importante, o fiel da balança. Além da subjetividade da correção, a escala gigantesca do processo impõe dúvidas sobre a uniformidade de critérios, isto para apontar apenas um dos pontos polêmicos nesse item.

As conclusões são claras. O Enem tem boas intenções, como, por exemplo, avaliar habilidades e competências, contemplar a compreensão de fatos e fenômenos com a meta de decretar o fim do puro conteúdo enciclopédico. Entretanto, é uma utopia defender essas premissas nesses dois primeiros anos em que o processo foi usado para selecionar estudantes para vários cursos universitários. A Teoria de Resposta ao Item (TRI) carece de transparência, a redação precisa ter correção auditada. A prova, que está longe de ser seletiva para os cursos de alta performance, só faz aumentar a ansiedade dos estudantes e torna a seleção ainda mais injusta, exacerbando a pressão psicológica e emocional.

Antes que paire alguma dúvida, é claro que abandonarei minha vaga para que a mesma ainda seja dignamente ocupada por um estudante que realmente tenha inclinação para a área médica. A minha humilde pretensão, como professor da área de exatas, foi tão somente dar voz à dor de tantos e tantos dedicados alunos que esbarram agora no Enem como mais um fantasma a ser driblado na busca de seus sonhos.

O Vestibular é, sim, injusto, mas é o mais justo processo que se tem até o momento. O Enem pode, no máximo, ser usado como primeira fase do vestibular, ou como um bônus, como faz a UFGRS. Conferir maior importância ao Enem seria imprudente e exporia nossos estudantes a uma incerteza mais cruel do que o gargalo que já enfrentam. Não haveria confiabilidade na seleção, como já não há nos processos em que o Enem é exclusivo.

Que os reitores e os professores universitários considerem muito essa nuança, antes de serem seduzidos por aumentos de verbas em troca da adoção do Enem.

Daniel Lavouras, 41 anos, é engenheiro aeronáutico (ITA), professor de Matemática e foi realmente aprovado em Medicina na UFCSPA pelo Enem