Memória e História: a presença do passado, artigo de Jader Nunes

Neste último mês de março completamos vinte e cinco anos – o tempo de uma geração – do início do processo de redemocratização do País, simbolizado pela eleição, mesmo que pela via indireta, do primeiro civil para Presidente da República, após mais de duas décadas de regime militar.

 

O diplomata e escritor francês Paul Claudel afirmou que “Não basta conhecer o passado, é necessário compreendê-lo.”

 

Nesta perspectiva, é apresentado aqui o ponto de vista – sem neutralidade – de quem viveu e acompanhou a resistência à ditadura militar no final dos anos 60 e início dos anos 70 – um momento dramático da história brasileira, em que o governo militar cerceou as liberdades civis e perseguiu violentamente seus opositores.

 

No nosso caso, é preciso inicialmente recordar as circunstâncias históricas do contexto internacional da época.

 

Foram vitoriosas ou estavam em curso inúmeras revoluções de libertação nacional, como, por exemplo, a Revolução de Cuba (1959), a independência da Argélia (1962) e a guerra antiimperialista em desenvolvimento no Vietnã. O êxito dessas lutas é fundamental para se compreender a mobilização e o ideário contestador nos anos 60, inclusive no Brasil.

 

Movimentos de protesto surgiram por toda parte, especialmente no ano de 1968.

 

Manifestações contra a guerra no Vietnã. Protestos contra a invasão soviética à Tcheslováquia – a chamada Primavera de Praga. O maio libertário dos estudantes e operários franceses, consagrado pelo slogan “sejamos realistas, exijamos o impossível”. A alternativa pacifista dos hippies e o desafio existencial da contracultura. Os sentimentos e as práticas de rebeldia por um mundo mais justo e solidário fundiam-se criativamente.

 

Aqui no Brasil, os filmes do Cinema Novo, as canções de protesto que eram apresentadas nos festivais, as peças contestatórias encenadas nos teatros Opinião e Oficina, enfim, inúmeras manifestações culturais, diferenciadamente, entre 1964 e 1968, cantavam em prosa e verso a liberdade e a democracia, em cuja luta a intelectualidade de esquerda estava organicamente engajada e embalada na utopia revolucionária.

 

Nesse ambiente de contestação, o movimento estudantil eclodiu em todo o território nacional. As manifestações de rua em protesto contra o regime militar multiplicaram-se nas principais cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro, onde a Passeata dos Cem Mil notabilizou-se na luta pelas liberdades públicas, com ampla participação da sociedade civil, com destaque para intelectuais, parlamentares, padres e artistas.

 

Em outubro de 1968 realizou-se o XXX Congresso da UNE, em um sítio na localidade de Ibiúna, a setenta quilômetros de São Paulo, do qual participaram mais de novecentos estudantes, representando suas faculdades, escolas e institutos de todo o País, todos escolhidos pelos seus colegas em eleições diretas. Lá estavam também, como convidados, jornalistas dos principais jornais brasileiros e de outros países.

 

Na madrugada de doze de outubro, contudo, tropas da Polícia Militar cercaram o local e prenderam todos os participantes do XXX Congresso, que foram levados em caminhões do Exército e em ônibus para o Presídio Tiradentes na capital paulista.

 

O dia já amanhecera e estávamos tomando café quando ouvimos um intenso tiroteio e percebemos o cerco policial que se fechava rapidamente. Inicialmente, presumi que eram balas de festim, pois se tratava de um evento pacífico, cujos participantes eram estudantes desarmados. De repente, percebi que as telhas de algumas pequenas edificações do sítio estavam sendo atingidas pelas balas disparadas pelas armas dos policiais. Para me proteger, joguei-me dentro de um abrigo que estava mais próximo: uma pocilga, que somente observei que estava desocupada e limpa quando fui capturado.

Cada um de nós foi interrogado pelo temível DOPS paulista, fichados nacionalmente e indiciados em inquérito policial. Após cerca de cinco dias de prisão, fomos conduzidos aos Estados de origem em ônibus fretados pelo governo de São Paulo.

 

É fantasiosa a ideia de que houve, por parte dos organizadores, a intenção de realizar clandestinamente um evento desse porte. Ocorreu presumivelmente um erro na análise de conjuntura, por não ter sido possível avaliar que setores militares mais direitistas – que já patrocinavam uma série de atentados de autoria oculta – se fortaleciam cada vez mais nos quartéis e ocupavam maior espaço na estrutura de poder. Ou seja, já estava em curso o processo de endurecimento do regime militar, o chamado “golpe dentro do golpe”. Tanto é que apenas dois meses após a queda do XXX Congresso da UNE, mais precisamente em treze de dezembro de 1968, foi decretado o Ato Institucional nº. 5 (AI-5).  Com ele, foi oficializado o terrorismo de Estado, sem aparência de quaisquer pruridos liberais. Agravou-se enormemente o caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional e as Assembleias Legislativas, assumiu a prerrogativa de cassar mandatos eletivos, suspendeu direitos políticos dos cidadãos, demitiu ou aposentou sumariamente juízes e outros funcionários públicos, aboliu o habeas corpus em crimes políticos, passou a julgar acusações de delitos políticos em tribunais militares, dentre outras medidas arbitrárias. Paralelamente, nos porões do regime generalizava-se o uso da tortura, de assassinatos e outros desmandos. Tudo em nome da “segurança nacional”.

 

Com o AI-5, foram presos cassados, torturados ou forçados ao exílio inúmeros estudantes, intelectuais, políticos e outros oposicionistas.

 

A repressão apertava o garrote massacrando e silenciando com sanha os que se opunham à ordem vigente. O regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação, colocando um fim à ação política e cultural do período. Por bastante tempo, não seria tolerada qualquer oposição ao governo, sequer a do moderado MDB.

 

Era a época do slogan oficial “Brasil, ame-o ou deixe-o”.

 

É nesse contexto que os anos 60 se caracterizaram como anos de resistência democrática. Acuados pelo regime de exceção, apenas a resistência era possível.

 

Para além dos sonhos revolucionários, não fizemos mais do que resistir. A um poder que eliminava as liberdades e desrespeitava a ordem jurídica. Que invadia casas sem mandado judicial, prendia e matava sem contemplação e utilizava a tortura como política de Estado. E assim, a luta dos poucos que lutaram com armas na mão exprime a insatisfação de uma sociedade esmagada. E o descontentamento dos que, embora não recorrendo às armas, também se opunham à ordem vigente.

 

Felizmente, a história demonstrou que essa luta não foi em vão. A sociedade brasileira conquistou a duras penas a redemocratização do País. E é ela que permite a cada cidadão a procura crítica de caminhos. É ela que nos assegura o direito de sermos inconformistas e inconformados. Enquanto existirem tais sentimentos, não terá sido em vão o sacrifício dos que tombaram nessa luta. A mais merecida homenagem que podemos dedicar-lhes é a celebração da democracia e da liberdade.

 

Aqui se aplica a afirmação do pensador católico Alceu de Amoroso Lima: “O passado não é aquilo que passou; é aquilo que fica do que passou.”

 

Jader Nunes é ex-reitor da UFPB