Novo presidente da SBPC busca unir esforços em favor da educação

Marco Antonio Raupp diz que governos e sociedade precisam fazer mais para garantir educação de qualidade. Leia a entrevista:

– De 1969 para cá, o que mudou na SBPC, o que mudou na ciência e no Estado brasileiro em relação à ciência?

O principal é que nós estamos vivendo a normalidade democrática, com todas as suas virtudes e defeitos. Nesse novo ambiente, a SBPC tem novas bandeiras, que são tão importantes quanto as daquela época de restabelecimento do regime democrático. O foco da SBPC hoje é contribuir para o desenvolvimento social, econômico e político do País. Por exemplo, uma das bandeiras de muita repercussão é a da educação básica. O País fez um grande esforço para melhorar a educação superior, por meio da Capes (Coordenadoria das Atividades de Pesquisa no Ensino Superior, do Ministério da Educação) ou do programa Reúne. O Brasil está bem nessa área, nossas universidades têm uma boa produção científica e estão se expandindo. Um indicativo disso é o recente programa do governo que elevou o número de vagas nas universidades públicas. A pós-graduação é um sucesso, forma de 10 a 12 mil doutores por ano. Isso mostra que a educação superior foi contemplada nesses últimos 50 anos. Houve uma reorganização das universidades e a criação de estruturas de apoio ao ensino superior e tudo isso resultou num sistema pequeno ainda – que tem que ser aberto para a participação ampla da sociedade, especialmente dos segmentos menos favorecidos – mas que registra conquistas importantes.

Mas deixamos de lado a educação básica. Por isso a SBPC está lançando um movimento, que corre paralelo ao "Todos pela Educação". A educação básica é uma questão emergencial. Todos nós, os cidadãos em geral, mas em particular a comunidade científica, temos que fazer um grande esforço em favor da melhoria da educação básica. A educação básica é um mecanismo importante de inclusão social, de redenção das classes menos favorecidas. É mais importante do que políticas compensatórias ou de qualquer outro instrumento. É a educação que, a longo prazo, viabiliza a participação do cidadão nos benefícios que decorrem da própria participação do cidadão nos esforços produtivos do País. Queremos nos associar com as forças vivas da sociedade civil e criar em favor da educação básica um movimento social do mesmo tamanho daquele da redemocratização. A educação básica tem um déficit importantíssimo no País, que influi no desenvolvimento social, econômico. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), temos uma falta de 250 mil professores de ciências e de matemática no Brasil. Isso é uma calamidade. Não tem professores. E quando tem, muitos deles não são qualificados. Inventaram aí um negócio de aulas de formação pedagógica para educador, mas isso é só forma, conteúdo não existe. Está cheio de professor de matemática que não sabe matemática, só sabe como ensinar. Mas ensinar o quê?

– Além da intenção de lutar pela melhoria da educação básica, que outras idéias animam a SBPC atualmente?

Uma outra bandeira importante da SBPC hoje é a questão das desigualdades regionais. Esse também é um déficit do País. Existe um desequlíbrio do esforço pelo desenvolvimento e, como resultado, dos benefícios do desenvolvimento. Há uma concentração no Sudeste, com algumas ramificações no Sul e agora no Centro-Oeste, como resultado da afluência do agronegócio. Mas regiões como a Amazônia, o Nordeste ou a plataforma marítima, a nossa Amazônia Azul, têm tido muito pouca atenção. E são áreas estratégicas, por vários motivos, mas em especial quanto ao conhecimento. São poucas as instituições na Amazônia engajadas no desenvolvimento do conhecimento como o da biodiversidade. E é daí que podem sair propostas de desenvolvimento que usem as riquezas naturais de maneiras não tradicionais. Cortar árvores para vender madeira não tem valor agregado algum. Queremos desenvolver produtos originados dessa biodiversidade que tenham valor agregado. Temos que entender o ciclo das águas na Amazônia, porque isso influencia o clima global. Nós temos responsabilidade geopolítica internacional, se nós não fizermos pesquisa, alguém vai fazer. É uma questão até de soberania.

A mesma coisa vale para a Amazônia Azul. Nós estamos penetrando até 7.000 metros abaixo da superfície, explorando petróleo. Na área do pré-sal, que são depósitos de rochas altamente vulneráveis, quando se tira o óleo, o ambiente se modifica em suas propriedades físicas, químicas etc. Precisamos explorar isso de uma forma sustentável. Outro grande desafio é levar o conhecimento para a capacitação das empresas brasileiras, para o serviço público brasileiro. É utilizar o conhecimento científico em áreas não tradicionais. O domínio tecnológico e a capacidade inovadora não estão disseminados no sistema industrial brasileiro. Nosso sistema industrial foi gerado num ambiente em que tecnologia não era um requisito, as empresas não precisavam competir internacionalmente, funcionavam porque havia proteções tarifárias. Hoje tudo está mais complicado, até a crise é global. A disseminação do conhecimento, quando incorporada às atividades de um país, permite superar qualquer crise. Precisamos estabelecer o paradigma da economia do conhecimento. Nos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), o conhecimento responde por 50% da economia. Essa capacidade do conhecimento de gerar bens, gerar produtos, processos e serviços novos é o que tem valor. A SBPC está nessa luta.

– Que obstáculos estruturais ou que mudanças básicas se colocam no caminho da consecução desses objetivos?

Muito importante é a questão do marco legal, da nossa estrutura jurídico-legal, que é pouco eficiente para proteger e estimular o desenvolvimento do conhecimento científico no País. É algo totalmente inadequado. Não é culpa de ninguém,especificamente, mas temos por exemplo no serviço público (justiça, parlamento, governo) algo denominado RJU (Regime Jurídico Único), que não responde às exigências das atividades dos novos tempos. Nas instituições de pesquisa, todo mundo é funcionário público, todos estão no RJU. Se a sociedade exige desenvolver a ciência, a solução é: vamos encher de gente, vamos lotar de funcionários públicos. Isso resolve? Não, não é? Ninguém quer isso. A Imprensa se rebela contra isso. Temos que acabar com esse RJU, que impede a convivência com outros regimes de contratações. Não se pode, por exemplo, ter metade dos funcionários pela CLT (Consolidação das LeisdoTrabalho) e a outra metade por esse regime. O que é que o jeitinho brasileiro fez? Criou as chamadas fundações de apoio, para contratar esses funcionários necessários, mas pelo regime da CLT. Mas hoje um acórdão do TCU (Tribunal de Contas da União) proíbe isso, o que está provocando uma crise nas instituições de pesquisa. Elas não podem viver apenas de funcionários públicos, na acepção antiga da expressão.

Os dois regimes podem conviver. As pessoas precisam de estabilidade, mas também têm que provar sua capacidade. Ou seja, tem que haver flexibilidade para contratação de pessoal, por exemplo, em regime temporário. O grande desafio é tornar a contratação de pessoal público semelhante ao de uma empresa qualquer. Temos que capacitar tecnologicamente os agentes econômicos do País. Hoje as fronteiras nacionais estão abertas, é preciso competir globalmente. Termos condições de competir, mas é necessário que nos preparemos. Todas essas são bandeiras, são passos necessários para transformar a sociedade, para torná-la mais igualitária, no sentido social. Nessa nova sociedade, a ciência vai ser muito mais importante, vai ter reconhecimento nacional e internacional, como já tem no mundo todo. A ciência vai desempenhar um papel muito mais importante em todos os sentidos do desenvolvimento – ambiental, social, econômico, político, tudo de forma sustentável. É preciso ressaltar que não estamos reivindicando o poder para os cientistas. Parodiando a expressão sobre a guerra, atribuída a um general norte-americano, a ciência é muito importante para ser deixada apenas nas mãos dos cientistas. A direção dessas coisas tem que ser compartilhada, é preciso uma visão multilateral, que só os grandes estadistas é que têm.

– A impressão que se tem é que a educação para as ciências piorou, embora tenhamos áreas de ponta e existam mais recursos e instituições disponíveis na sociedade. Isso é real?

Realíssimo! Nós fizemos um esforço de 50 anos para aprimorar a educação superior, que é esse esforço da Capes, das reformas universitárias. Tudo isso melhorou, tanto que os indicadores da produção científica e a formação de pós-graduados melhoraram, apesar de ainda serem insuficientes. O número de engenheiros formados no país é cerca de 30 mil por ano; a China, que é um exemplo de desenvolvimento hoje em dia, forma 500 mil. Ou seja, dezesseis vezes mais, para uma população que é seis vezes a brasileira. Isto significa que se dobrarmos a nossa produção anual de engenheiros ainda estaríamos longe de nos igualarmos aos chineses. Fizemos algum esforço, mas ainda é pouco. Então, é verdade a colocação feita na pergunta, mas nós da SBPC estamos preocupadíssimos, estamos querendo nos unir a outros setores para realizar um grande esforço. Agora: isso é uma coisa de anos, é algo que vai longe. Legislações já foram criadas, aprovadas no Legislativo, como esse negócio de fazer os orçamentos municipais garantirem 25% para a educação, mas estamos longe de suplantar o problema só com isso. Precisa muito mais para que tenhamos uma educação de qualidade, que promova qualidade, que aumente a capacidade de inserir o jovem na sociedade moderna.

– A SBPC é episódica? Vive do amplo noticiário produzido pelas suas reuniões, durante as férias acadêmicas de julho? E no resto do ano, o que faz?

A SBPC é permanente, a nossa atuação é um processo. A reunião anual é um ápice, um episódio realmente importante. Mas ela se insere dentro do processo. A gente junta todos os focos, digamos assim, e isso tem uma divulgação muito ampla. A entidade atua na intersecção entre ciência e sociedade, portanto a nossa responsabilidade com essa reunião anual é alertar a sociedade para os grandes temas, os desdobramentos da pesquisa científica, da educação científica e mostrar como a sociedade pode se beneficiar disso. Mas no dia-a-dia, todas as semanas, todos os meses, nós exercemos funções de acompanhamento dos órgãos executivos, legislativos, promovemos questionamentos a órgãos como o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), Capes, MEC. Temos representação nos vários órgãos, desde municipais até federais, como o Conselho Federal de Ciência e Tecnologia. Participamos da elaboração de leis, temos discussões, propostas e intervenções.

Por exemplo, a Lei Arouca, que ficou doze anos parada no Congresso, só foi aprovada depois que a SBPC levou a um esforço final pela sua aprovação. Essa discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o uso de células-tronco embrionárias na terapia celular, a SBPC teve um papel importante nisso, que acabou dando as bases para a aprovação final no STF. A questão do aborto, no caso dos fetos com anencefalia, nós fomos lá, demos depoimento técnico, levando a uma maior compreensão do Supremo em relação a isso. São exemplos de uma atuação permanente. No estado de São Paulo, participamos até do Conselho da Fundação Padre Anchieta, que rege a TV Cultura; participamos das discussões até do futuro da televisão. Ou seja, nossa atuação não é episódica de maneira nenhuma. É permanente.

(Edmilson Conceição, da revista Economia Interativa)