O assalto à democracia

O Brasil é realmente um país surpreendente. Talvez pela nossa formação histórica, originariamente autoritária e excludente, a prática dos dois pesos e duas medidas, simbolizadas nas relações entre a Casa Grande e a Senzala, está fortemente enraizada na sociedade e na cultura das elites.  Graves violações do estado de direito ou da moral pública são admitidas ou até mesmo exaltadas, desde que praticadas em concordância com seus interesses, suas preferências ideológicas ou suas simpatias político- partidárias. É a ética de resultados, cujo corolário é o cinismo como método de fazer política.

A tentativa de derrubar a atual Presidente da República, que se iniciou no dia seguinte à sua vitória nas urnas, é uma ilustração clara desse padrão. Esse processo está sendo conduzido por um réu por corrupção e lavagem de dinheiro, membro de um partido cujo presidente, também denunciado em uma das tantas delações premiadas de moda no Paraná, determinou o rompimento com o Governo, embora ele mesmo não o tenha feito. O processo é apoiado pela grande mídia e por líderes da Oposição, todos indômitos críticos da corrupção, embora sobre muitos deles – órgãos da mídia e líderes – pesem denúncias de desvio de recursos públicos, tráfico de divisas, sonegação de impostos, recebimento de propinas, para citar só alguns exemplos.

Não bastasse isso, o processo de impeachment contra a Presidente não tem fundamento concreto, jurídico ou factual. Os argumentos invocados para sua justificação variam ao sabor da conjuntura, dando a impressão de que em realidade há um prejulgamento a partir do qual se buscam tentativas de incriminação, em um estilo de fazer inveja aos tempos áureos do obscurantismo inquisitorial.

Impeachment sem fato comprovado, sem base jurídica, é golpe. Impeachment contra uma autoridade legitimamente eleita, sobre a qual não existe prova de crime de responsabilidade ou de envolvimento em atos ilícitos no exercício do seu mandato, é golpe. E mais, é um golpe que nasce marcado pela ilegitimidade moral dos que o lideram e de muitos dos que o apoiam, na mídia, no Congresso e no Judiciário.

Mas, qual é projeto que os promotores do golpe oferecem ao País? Por que querem assaltar o poder e derrubar a presidente eleita, atropelando a Constituição e as instituições democráticas?

Aqui vale separar duas classes de motivações. A primeira, mais óbvia, é a urgente restauração do anterior regime de impunidade, com o “engavetamento” das denúncias e processos contra os implicados em atos de corrupção pertencentes à Casa Grande e sua entourage, sem prejuízo, é claro, da rigorosa punição, mesmo sem provas, para a turma da Senzala e seus simpatizantes. A segunda se relaciona aos interesses econômicos, internos e externos, em jogo. Nessa esfera, as propostas públicas dos promotores do golpe tem quatro eixos articulados e interdependentes:

  1. implantação do que os economistas neoliberais e a mídia conservadora chamam de “reformas estruturais que o País necessita” – ou seja, a reforma da legislação e das relações trabalhistas, com a perda do poder de negociação dos trabalhadores e esvaziamento dos mecanismos de proteção do emprego; a reforma fiscal, para viabilizar o corte dos gastos sociais em educação, saúde, previdência e em programas de transferência de renda para os setores mais vulneráveis da população; a liquidação da política de valorização real do salário mínimo, implantada a partir de 2003; e o aprofundamento e generalização da privatização dos serviços sociais básicos;
  2. restauração da matriz econômica neoliberal dos anos 90, com a redução do papel de coordenação e regulação do Estado na economia e consequente reversão das políticas de compras estatais, de conteúdo nacional e de financiamento público, o abandono da centralidade do crescimento e do emprego no desenho da política econômica e a privatização do que resta de patrimônio público, especialmente no que se refere ao pré-sal, a outros recursos naturais estratégicos, incluindo a água, e aos bancos públicos;
  • retomada e aprofundamento do processo de inserção subordinada do Brasil na ordem global, com a intensificação da abertura comercial e financeira da economia, a adesão a acordos internacionais de investimento voltados para a hierarquização dos interesses das corporações multinacionais e a adequação do marco jurídico nacional sobre a matéria à legislação norte-americana;
  1. a liquidação do projeto de transformação do Brasil em potência regional – com a reversão da política de consolidação do Mercosul e de outras instituições de âmbito sul-americano, o esvaziamento das relações com os BRICs e outros parceiros estratégicos da Ásia e da África, a reorientação do posicionamento do País nos fóruns internacionais e a adequação da política de defesa nacional ao padrão geopolítico comandado pelos Estados Unidos.

Em resumo, trata-se de reordenar o modelo de acumulação e de distribuição da renda de acordo aos interesses da Casa Grande e de seus parceiros externos – a potência hegemônica e as grandes corporações interessadas em ocupar o mercado nacional, explorar a força de trabalho nativa e controlar os recursos naturais estratégicos do País. E de assegurar que os custos do ajuste da economia, que a elite empresarial, beneficiária de bilhões de reais de isenções e renúncias fiscais, se nega a compartilhar, sejam pagos pelos de sempre, os trabalhadores e os setores de menores recursos, que são a maioria esmagadora da população.

Esse modelo econômico é incompatível com o aperfeiçoamento democrático, com a universalização da cidadania e dos direitos sociais e com a redução das assimetrias de renda, riqueza e oportunidades ainda vigentes.  Ele não cabe na Constituição de 1988, é um modelo de privilégios, para poucos. De ser implantado, condenará o Brasil à condição de mero território de expansão e realização de lucros do capitalismo global, com a regressão do seu processo de desenvolvimento, a desindustrialização da economia, a exacerbação do rentismo e o agravamento dos fenômenos de exclusão e desigualdade social. O que, obviamente, não exclui que setores que hoje financiam e apoiam o assalto à República multipliquem substancialmente suas rendas e engordem suas contas nos paraísos offshore

   

Gerson Gomes é  economista e ex-Cepal e ex-FAO.