O desafio de inovar no ensino de ciências, artigo de Isaias Raw

Enquanto a sociedade espera inovações inteligentes, o desconhecimento do passado frequentemente leva a reinvenções deformadas. O vestibular unificado surgiu na Faculdade de Medicina da USP. O Cescem (Centro de Seleção de Candidatos às Escolas Médicas, Fundação Carlos Chagas) unificou o vestibular para as faculdades de medicinas de São Paulo, logo imitado em Pernambuco e no Rio de Janeiro. Acabamos com a multiplicidade de vestibulares oferecendo as vagas aos alunos com maior chance de, usando o ensino superior fundamentalmente pago pela sociedade, dar o maior retorno.

Para que a classificação fosse precisa, o vestibular ampliou os exames, substituindo dissertações, impossíveis de ter um julgamento consistente, por provas de múltipla escolha, que eram avaliadas objetivamente por um sistema de computador.

Essas provas não se destinavam a avaliar o curso secundário ou seus professores e não se restringiam a perguntas que avaliavam memorização de livros tradicionais defasados, mas exigiam capacidade de discernimento de poder aplicar o que deveriam ter aprendido (não ensinado) para novas situações.

Esse sistema atendia ao candidato, que declarava cursos e faculdades em ordem de sua preferência, e revelou a necessidade de exames regionais, não nacionais. O vestibular não pode apenas aprovar. Ele deve classificar os alunos, distribuindo as vagas existentes. Alunos que, em vez de entrar num curso médico, obtinham uma vaga para veterinária, desistiam do curso no primeiro ano e voltavam a fazer o vestibular.

Paulistas que ingressaram no Paraná faziam novo vestibular em São Paulo ou, ocupando vagas, terminavam o curso para voltar para exercer sua profissão nesse Estado. "Pequenos" problemas práticos que os educadores não contemplam ao propor simplesmente o uso do Enem. Antes do Cescem, foi na Faculdade de Medicina que surgiu o Ibecc-Funbec, que inovou o ensino das ciências nas escolas secundárias.

Associou-se à US National Science Foundation, Fundação Ford e União Panamericana, recrutando cientistas de alto nível (não professores do secundário ou pedagogos) para rever metas e conteúdo dos novos textos (que no Brasil deu origem à editora da UNB), que exigiram livros de apoio e curso para os professores, dando ênfase ao ensino experimental, criando novos equipamentos de baixo custo e que permitiam aos alunos fazer experiências e tirar conclusões.

O vestibular ganhou outro papel, o de difundir esse novo conteúdo e método para aprender ciência, trazendo para o secundário descobertas fundamentais, como DNA, ecologia e evolução, fundamentos das reações químicas e da estrutura molecular, conservação da energia, entropia, a dualidade onda-partícula e a relatividade. Para isso, os 1.500 candidatos mais bem classificados ainda se submetiam a provas de laboratório que exigia correlacionar informações com a realidade física.

Hoje, o número de candidatos não permitiria essas provas, mas deve conter quesitos que considerem na avaliação a capacidade de interpretar dados colhidos de experiências reais, em vez de medir memória de livros ou da tela do Google, que aceitam tudo.

O plano de ressuscitar os "Kits Cientistas", cuja tiragem foi de mais de 2 milhões, levará para as casas e para as escolas a possibilidade de aprender de experiências realizadas, observações e interpretações pelos jovens estudantes, que não seriam mais reféns de falsas informações.

Como a sociedade esquece, somos obrigados a reinventar. O famoso pesquisador Bruce Albert, da Harvard e editor da revista "Science", desafia a comunidade científica, num editorial publicado em 23/1/09, para um novo ciclo de inovação do ensino de ciências e aponta as seguintes metas: preparar os estudantes para gerar e avaliar evidências científicas e suas explicações, entender a natureza e o desenvolvimento do conhecimento científico e participar de forma produtiva das práticas científicas.

Um desafio que não se resolve mobilizando autores de compêndio, educadores de escrivaninha, donos de cursinho ou alterando regras de admissão às universidades, admitindo alunos, maiorias ou minorias, que não foram preparados para perpetuar mais do que a mediocridade do ensino de ciências e seu impacto no desenvolvimento, a formação de uma sociedade que não entende o mundo onde vive.

ISAIAS RAW, 82, professor emérito da Faculdade de Medicina da USP, é presidente da Fundação Butantan. Foi fundador da Funbec (Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências) e da Fundação Carlos Chagas

Folha de São Paulo – 14/04