Pantomima quadrangular

Em 17 de abril, mais de dois terços da Câmara Federal votaram por enviar ao senado o processo de impedimento que pode interromper o mandato da presidente Dilma; desses mais de dois terços, a imensa maioria votou, expressamente, invocando Deus, o Brasil e a família; alguns lembraram a importância dos produtores rurais e sua propriedade; os que exaltaram a família fizeram distinção para a mulher e os filhos; todos esses eram os mais efusivos e disseram sim para o impedimento. Até aí, nada mais santo e cívico.

Os que votaram pelo não ao impedimento tiveram mais contenção; mas também houve depoimentos veementes. Esses depoimentos evidenciaram a ilegitimidade daquele rito de impedimento porque a imensa maioria dos votantes estava envolvida em processos de corrupção. Mais: os que votavam pelo fim do mandato de Dilma eram comandados pelo principal envolvido – Eduardo Cunha, presidente da Câmara, que chegou a ser chamado de bandido e de gângster. Em seu voto, Cunha pareceu divulgar uma senha: “que Deus tenha misericórdia do Brasil”, a senha de um rito dirigido.

Se a fala dele é a senha de identidade entre os votantes do sim; se é verdade que o rito encobre o circo armado por corruptos para garantir seu futuro imediato, tomando o poder e mudando o ritmo e a direção das investigações, com a cumplicidade autocomplacente de Moro et caterva, espécie de estoicismo moral próprio do herói em que ele se investiu; se tudo isso tem algo de verdade, temo que Deus esteja em má companhia; temo que as mulheres e as crianças não sejam tão amadas como pareceu.

Deus, pátria, família e propriedade formam o quadrangular confessional da igreja a que alguns dos votantes afirmaram pertencer. Enquadrado assim, Deus pouco poderá fazer pelo resto do povo; precisando da proteção heroica desses maridos e desses pais, mulheres e crianças não estarão tão protegidas quanto esperam, porque o espaço social estará mais degradado, uma vez que contaminado por um rito político escuso, um rito de mascaramento.

A recente decisão da Câmara ocorre em meio a grandes mobilizações populares. Com a lição das grandes mobilizações pelas Diretas já, em 1984, que acabaram comprimidas por um Colégio Eleitoral estreito, não devemos nos perder dessa vez.

A lição em curso aponta que os sinais das ruas indicam direção vária, para além do sim e do não. Os sinais das ruas dizem que a resistência, o esclarecimento e, portanto, o embate político deve ser a céu aberto. Os sinais das ruas apelam a todos que para ruas convirjam. Aí, poderemos aprender as lições que não aprendemos no rito fechado da Câmara.

A criatividade e a energia solidárias das ruas podem nos ajudar a exorcizar os fantasmas que a mídia projeta diante de nós. Mesmo feérica e brilhante, a tela quadrangular da grande mídia existe, paradoxalmente, para cristalizar a “fria escuridão de nossa caverna primitiva”. As ruas não são quadrangulares; são poliédricas. Ainda bem.

José Edilson de Amorim (Professor e reitor da UFCG)