Por que o Enem tem apresentado tantos problemas?

Objetivo do MEC com a prova é induzir mudanças no ensino médio, mas algo parece não estar dando certo

 

O Ministério da Educação (MEC) propôs, no ano passado, que o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) substituísse o vestibular nas universidades federais e trabalhou para convencer estas instituições. Este ano, pelo menos 36 delas devem selecionar exclusivamente com o exame, enquanto as outras 23 usarão a nota pelo menos parcialmente. O principal objetivo do MEC com a prova não é a centralização do vestibular, mas induzir mudanças no ensino médio.

 

Como o Enem pode reformar o ensino médio? Fácil. Com um vestibular que cobra competências e habilidades, as escolas perceberiam que seus currículos não têm muito sentido. Aos poucos, seria abandonada a educação bancária e conteudista, que força a “decoreba” de conteúdos infinitos. Em seu lugar, apareceria uma educação comprometida em fazer o aluno aprender a “conhecer”, a “fazer”, a “ser” e a “conviver”.

 

A ideia realmente é muito boa, mas algo parece que não está dando certo. A sensação que dá, após tantos e tantos problemas associados à prova, é de que algum “iluminado” – talvez o próprio ministro – tenha encontrado o caminho para uma educação de melhor qualidade, mas esqueceu de combinar com o resto do time.

 

Realmente, uma reforma deste porte na educação tem muitos adversários. Entre eles, o conservadorismo, as estruturas burocráticas dos velhos vestibulares e os vários interesses econômicos ligados ao setor. Acontece que todos estes adversários juntos não fizeram contra o Enem nem 10% do estrago que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e o MEC conseguiram fazer. As ações destes órgãos, desde o anúncio do novo Enem, ora primam pela incompetência em aplicar esta reforma, ora apresentam um desleixo que chega a atentar contra seus objetivos.

 

Uma pequena análise de algumas trapalhadas do exame mostra esta realidade. Primeiro, houve erro na escolha do consórcio que organizou a prova no ano passado. A falta da busca de alternativas fez com que uma licitação fosse feita às pressas e o vencedor fosse um grupo sem nenhuma condição de cuidar do exame. O vazamento da prova, por mais grave que tenha sido, acabou evitando um desastre maior. O MEC até poderia tê-lo evitado – se, pelo menos, assistisse aos vídeos gravados durante a impressão e manipulação das provas –, mas outros problemas certamente aconteceriam no dia do exame.

 

Em seguida, na aplicação da nova prova, descobrimos que a tal Teoria da Resposta ao Item (TRI) não foi utilizada, como prometido. A TRI deveria garantir o mesmo peso para todas as provas do Enem, pois só assim poderíamos comparar o resultado de um ano com o do outro. Desafio qualquer um a aplicar as duas provas do ano passado, a que vazou e a que foi aplicada, em um grupo de 100 pessoas e obter resultados parecidos. Os dois exames eram muito diferentes. A que vazou, boa, bem feita e de acordo com a proposta, e a aplicada é mal feita, diferente da proposta, em algumas questões conteudista, mal formulada e com respostas duvidosas.

 

Após a prova, o Inep conseguiu divulgar o gabarito errado. E a façanha não parou aí: descoberto o erro, demorou mais de 12 horas para a divulgação do correto. Isto demonstra que os técnicos do ministério não tinham só errado a ordem das questões, mas devem ter passado a noite, a madrugada e o começo do dia seguinte resolvendo a prova para indicar as alternativas menos absurdas como corretas.

 

Já em 2010, o MEC tinha prometido realizar duas edições do Enem, não para se aproximar dos EUA, onde o exame nacional tem sete edições, mas porque algumas universidades que passaram a selecionar exclusivamente pelo exame precisavam da nota de seus candidatos para as vagas de meio de ano. Em cima da hora, o ministério decidiu fazer apenas uma edição, e as cerca de 16 mil vagas do segundo semestre só foram oferecidas para quem fez o Enem em 2009. Tal decisão está relacionada à preocupação do governo federal em não atrapalhar a candidatura do PT ao Planalto. Um problema como o do ano passado poderia atrapalhar a candidata do governo e, por isso, a prova será no final de semana posterior ao segundo turno das eleições. É bem verdade que a candidatura do PSDB também não foi inocente e trabalhou para impedir que a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) não utilizassem a nota do Enem, ampliando as criticas ao exame.

 

Também na apresentação dos resultados, o MEC erra. Neste ano, voltou a divulgar as notas médias das escolas do ensino médio no exame, o que até é positivo, se não ocorressem dois grandes erros. Primeiro, o MEC deixou de ponderar as notas, como ocorria nos primeiros anos, quando notou-se que algumas escolas faziam de tudo para que alunos tidos como “ruins de nota” não fizessem o exame. Para evitar de beneficiar estas escolas, passou-se a dar uma nota parecida com a média nacional para os estudantes concluintes que não fizessem a prova. Este ano, o MEC simplesmente esqueceu de ponderar a prova e não falou nada sobre o assunto. Para piorar, a forma de divulgação dos resultados foi uma afronta a qualquer pessoa que leve a sério a educação. Nos outros anos, podíamos dizer que o MEC só divulgava a nota e quem classificava as escolas como melhores ou piores era a imprensa. Ocorre que este ano o próprio site do Enem tem uma ferramenta que classifica as escolas, o que mostra que no ministério as pessoas não aprenderam que uma avaliação se faz de forma relativa, olhando onde estava uma escola e onde ela chegou, e não com os números absolutos.

 

Aí soubemos do vazamento dos dados pessoais das pessoas que fizeram o Enem nos últimos três anos. Isto é grave. E, mais grave ainda, foi a reação do presidente do Inep. Para ele, os dados eram “reservados” e não, sigilosos. Esta posição é equivocada e revela certo desrespeito aos direitos individuais. Nossa Constituição garante a vida privada e a intimidade. O Inep precisa saber que algumas das competências e habilidades avaliadas no Enem estão relacionadas aos direitos individuais. Fosse o Inep avaliado por isto, teria uma nota muito baixa.

 

Por fim, se é que as trapalhadas terão fim, o MEC errou na licitação para escolher quem fará a impressão da prova. Quem se equivocou no ano passado na segurança foi o MEC, por ter contratado um consórcio incapaz de garantir o exame e por não ter “visto” as gravações da impressão e manuseio da prova. A gráfica Plural não teve responsabilidade. No desespero de achar culpados e de se livrar da responsabilidade, desclassificou a proposta de melhor preço, sem motivos jurídicos para tal. O que pode acontecer nos próximos dias é a gráfica ser reincorporada à licitação, vencê-la, e o segundo colocado questionar na Justiça o certame. E aí, gente, é impossível saber quando terminará a batalha jurídica e se teremos mesmo uma prova impressa até o dia do exame.

 

Mateus Prado cursou Sociologia e Políticas Públicas na USP. É presidente nacional do Instituto Henfil e autor de livros didáticos. Presta assessoria em ENEM e em Aprendizagem Baseada em Problemas para escolas de ensino médio.

 

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