Prova para 3,3 milhões

Com uma abstenção de 28%, o Enem será utilizado por 24 universidades federais. Candidatos elogiam o conteúdo e a redação

Ontem, os mais de 3,3 milhões de candidatos que compareceram aos 16 mil locais de prova, em 1,8 mil municípios, tiveram cinco horas e meia — das 13h às 18h30 — para responderem a 90 questões de matemática, linguagens (inglês ou espanhol) e códigos, além da redação com o tema “Trabalho na construção da dignidade humana”. A prova vai ser utilizada por pelo menos 24 universidades federais como forma única de ingresso em 2011. O Sistema de Seleção Unificado (Sisu) será adotado por 38 instituições de ensino superior, no preenchimento total e parcial das vagas. Entre os inscritos, 528 mil buscam apenas a certificação do ensino médio. Para obtê-la, os candidatos devem ter no mínimo 18 anos, alcançar uma pontuação mínima estipulada na prova e na redação.

A média de abstenção registrada no fim de semana de prova foi de 28%. Bahia (33,6%), Roraima (33,07%), Distrito Federal (32,54%) e São Paulo (32,27%) foram os Estados com o maior número de faltas. A estimativa feita pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) é de que 3,3 milhões dos 4,6 milhões de inscritos fizeram os exames. A entidade considera o índice de abstenção “dentro da normalidade”.

A estudante Letícia Caixeta Mesquita, de 18 anos, foi uma das poucas candidatas que perderam o horário no segundo dia de prova. “Meu ônibus não passou e tive de ir à rodoviária. Lá, perdi o horário. Gostaria de ter feito a prova porque estudei muito e estava confiante, mas não deu. Agora é estudar para os próximos”, lamenta. Quem fez a prova ontem elogiou o conteúdo. “Gostei da prova nos dois dias. Acho que o exame aborda conhecimentos gerais e exibe menos ‘decoreba’ e fórmulas. Com esse formato é melhor. Também achei a redação tranquila ”, avalia a estudante do 3º ano do Ensino Médio Lohanna Lima Pires, apesar de destacar que a UnB, local onde pretende cursar odontologia, não tem vagas por meio do Enem.

Já João Paulo Dayer Borges revela que não estudou como deveria para o Enem, à espera de ser contemplado pelo Financiamento Estudantil (Fies). “Na verdade, eu gostaria de ser do Exército e o cargo que quero exige nível superior. Mas, infelizmente, acho que minha nota não vai ser boa”, diz. A nota obtida no exame pode ser utilizada para fornecer bolsas de estudos parciais ou integrais, por meio do ProUni, em instituiçoes privadas de ensino, a candidatos que atendam a exigências socioeconômicas. A redação é corrigida por dois revisores de forma independente, sem que um conheça a nota atribuída pelo outro. A nota final corresponde à média do total atribuído pelos dois. Desde 2009, o Enem ganhou importância e passou a ser usado como vestibular para dezenas de universidades federais. Apesar de a edição de 2009 ter contabilizado 4,1 milhões de inscritos, apenas 2,6 milhões de estudantes fizeram as provas.

Familiares

Enquanto os candidatos realizavam a prova, parentes esperavam do lado de fora. “Como minha filha não sabe andar muito bem aqui no Plano Pilto, vim com ela. E hoje (domingo) ela me disse que vai demorar mais que ontem. Vou esperar”, contou Lindalva Loiola, que tomou um ônibus com a filha no Riacho Fundo. “Vim do Park Way com minha irmã porque depois da prova vamos ao shopping”, disse Hilário Júlio, de 14 anos, que aguardava em frente a um colégio particular da Asa Sul. Muitos comerciantes que trabalham na entrada dos locais de prova reclamaram que as vendas neste ano foram fracas. Juliana Moura, que comercializa balas, chocolates, canetas e guarda-chuvas, afirma que foi o pior fim de semana de trabalho do ano. “Não me lembro de ter vendido tão pouco como agora. Não sei o que aconteceu. Só sei que em dia de concurso ou vestibular lucramos muito mais”, diz.

Memória

Série de trapalhadas
Além do erro de impressão na folha de respostas e duplicação de questões da prova do último sábado, o Enem já apresentou outros problemas:

Julho de 2009 – site congestionado
Quando foi anunciado que o Enem seria utilizado também para ingresso em universidades públicas, o sistema de inscrição apresentou problemas devido ao grande número de acessos. O prazo final para o cadastro acabou sendo prorrogado por três dias.

Agosto de 2009 – Justiça determina reabertura de inscrições
A Justiça Federal determinou que as inscrições do Enem fossem reabertas. O pedido foi feito pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro sob argumentação de que o Inep não poderia ter exigido o CPF dos candidatos no ato da inscrição. Segundo o MPF, estudantes menores de idade não são obrigados a possuir o documento.

Outubro de 2009 – provas furtadas
Dias antes da realização do exame em outubro, as provas foram furtadas da gráfica responsável pela impressão dos cadernos. Com isso, o Enem teve de ser adiado e, depois do episódio, diversas instituições desistiram de utilizar o resultado do Enem no processo seletivo.

Dezembro de 2009 – gabarito errado
Com índice de abstenção de 38%, a prova foi marcada por confusões em vários estados. Além disso, o gabarito da prova foi divulgado de forma embaralhada e trocada. O Inep identificou o erro e foi obrigado a publicar novo gabarito.

Janeiro de 2010 – problemas no Sisu
O Sisu (Sistema de Seleção Unificada), que usa as notas do Enem para selecionar estudantes para universidades federais, travou no primeiro dia de inscrições. Além disso, houve casos de estudantes que perderam vagas em instituições após mudanças na lista de espera do sistema. O MEC afirmou que os casos foram resolvidos.

Agosto de 2010 – vazamento de dados pessoais dos candidatos
Em agosto deste ano, quando ocorreu uma falha no site do Inep que permitiu acesso livre aos dados pessoais de 12 milhões de inscritos nas últimas três edições da prova, era possível ter acesso a nome, RG, CPF, data de nascimento, nome da mãe e até as notas dos estudantes. Após a constatação do erro, o órgão tirou a página com as informações do ar.

Palavra do especialista

Uma boa ideia mal executada

Daniel Cara

A nova concepção do Exame Nacional do Ensino Médio, esse Enem que pretende se tornar a principal porta de entrada para a universidade pública no Brasil, já é soberana e já conseguiu ser aceita — tanto por parte dos alunos quanto das instituições. Mas isso não vai se concretizar se erros de gestão graves como os que ocorreram na primeira edição do exame já no novo modelo, em 2009, e ocorreram novamente, na atual edição, persistirem.

Para o fortalecimento dessa concepção vitoriosa, esses erros não podem voltar a ocorrer de forma alguma. É preciso salientar que os problemas verificados em 2009, como o vazamento de provas, são maiores que os problemas ocorridos nesta edição. Independentemente da diferença entre eles, considero ambos graves. Tais falhas, se repetidas em edições posteriores, podem derrubar a ideia de um Enem forte, baseado numa prova de raciocínio e unificada.

É importante que nada ameace a nova concepção do Enem, porque ele representa, da forma como foi idealizado, uma boa notícia para os jovens. Facilita a construção do projeto de vida do estudante, a ideia do ingresso na universidade. O Enem também é uma estratégia interessante, não a única nem a mais importante, de fortalecer o ensino médio no Brasil — uma etapa considerada desinteressante por grande parte dos alunos em que a evasão atinge níveis recordes.

Por tudo isso, é preciso que o governo federal se empenhe em um planejamento correto para evitar qualquer erro como os que ocorreram até aqui na aplicação do Enem. Além de provocar frustração de alunos e falta de confiança por parte das instituições, as sucessivas falhas colocam em risco esse novo Enem que pode, se bem executado, representar inúmeros benefícios a alunos, universidades e à educação brasileira de uma forma mais ampla.

Novas falhas colocam Enem na berlinda

Ministério Público Federal e OAB estudam pedir a anulação do Exame Nacional do Ensino Médio caso fiquem configurados erros graves. Estudantes lamentam

A aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), encerrada ontem como forma de seleção unificada para 83 mil vagas em instituições públicas de ensino superior no país, não significa fim da angústia dos estudantes. Marcado por problemas como cabeçalhos de prova discordantes dos títulos das folhas de respostas e suspeita de vazamento de questões pelo Twitter, o exame poderá ser anulado. O Ministério Público Federal em São Paulo deve analisar as falhas ocorridas hoje e, se considerar necessário, pedirá a invalidação das provas. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) classificou o episódio “desastroso e lamentável”. Presidente da entidade, Ophir Cavalcante não descarta trabalhar, também, pelo cancelamento da seleção. “Tudo será possível, desde a anulação das provas, com a repetição dos testes, até o aproveitamento do exame”, assinala.

Em entrevista coletiva no domingo à noite (7/11), Joaquim José Soares Neto, presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao Ministério da Educação e responsável pelo Enem, afirmou que o processo de realização das provas foi feito de maneira segura e tranquila e que cada caso apresentado pelos candidatos será analisado. “O processo do Enem é complexo e humano. São mais de 350 mil pessoas trabalhando na realização do exame, além de 6 mil profissionais dos Correios e policiais de todos os estados do país. Evidentemente, está sujeito a falhas. Mas não houve qualquer problema relacionado à garantia da segurança e do sigilo dessa operação. Por isso acredito que foi um sucesso”, avalia.

O físico Leandro Tessler, coordenador por sete anos do vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considera que a iniciativa do Enem como um processo seletivo a ser utilizado pelas instituições de ensino superior é vantajoso e que os problemas não podem minimizar as qualidades do atual aspecto de seleção. Porém, o especialista acredita que houve erros na edição deste final de semana. “Talvez tenha sido falta de revisão, um descuido antes de o material ter sido enviado à gráfica. Já tínhamos observado problemas variados com as provas, antes, relacionados à proteção de dados e a detalhes logísticos. Tudo o que ocorreu é muito ruim para o processo”, comenta o atual coordenador de Relações Internacionais da Unicamp.

A candidata Letícia Caixeta Mesquita, de 18 anos, também reclamou de algumas regras deste ano e do gabarito trocado de sábado . “Não gostei da proibição de relógio. Fiquei perdida, pois não sabia que horas eram. Foi terrível. Quanto ao erro do gabarito de sábado, nós, candidatos, é que tivemos de avisar aos fiscais sobre a situação. Eles não sabiam”, lamenta a estudante. Para a jovem Lohanna Lima Pires, que também fez a prova neste fim de semana, problemas dessa natureza impedem que mais universidades utilizem o Enem como vestibular. “Queria odontologia na UnB. Mas, pelo Enem, não tem como”, reclama.

Requerimento

Quem se sentiu prejudicado pela troca do cabeçalho do gabarito deverá elaborar um requerimento no site do MEC a partir de quarta-feira até o próximo dia 16. Uma falha de impressão nas provas amarelas aplicadas ontem também serão objeto de verificação da pasta. De acordo com Neto, presidente do Inep, cada caso será analisado. “Todos os estudantes serão atendidos. Não adianta ficar procurando responsáveis pelos problemas agora. Nós vamos apurar. Quanto ao caso do erro de impressão do caderno de provas amarelo, nós ainda estamos levantando a dimensão do problema. Sabemos que alguns alunos não tiveram as provas trocadas pelos fiscais”, afirma. Ophir Cavalcante, da OAB, é mais radical. “Pelo que tentaram explicar, está configurada incompetência, em um caso que traz dinheiro público envolvido. O esperado é que haja seriedade nessas questões”, enfatiza o presidente da entidade.

Ameaça pela web

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) bombou ontem no Twitter, aparecendo entre os trending topics (assuntos mais comentados), na maioria das vezes como motivo de piada. Foi por meio da rede social também que o Ministério da Educação ameaçou estudantes que “tumultuaram” o processo na internet. Utilizando uma linguagem no mínimo inapropriada, a pasta postou a seguinte mensagem: “Alunos que já dançaram no Enem tentam tumultuar com msgs [mensagens] nas redes sociais. Estão sendo monitorados e acompanhados. Inep pode processá-los”. Por meio da assessoria, o Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) explicou que uma equipe identificou que grande parte dos usuários do Twitter não estava fazendo as provas, mas brincando na internet.

Outro episódio que coloca o Enem mais perto de um caso de polícia do que de uma avaliação educacional ocorreu em Pernambuco. Lá, um repórter do Jornal do Commercio que estava inscrito no exame entrou na sala com um celular ligado no bolso. Após receber o caderno de provas, foi até o banheiro, de onde mandou uma mensagem pelo celular informando o tema da redação. Na coletiva de ontem, o presidente do Inep, Joaquim Neto, afirmou que a Polícia Federal foi acionada e que a instituição poderá processar o repórter por ter cometido “ato ilícito ao atentar contra as regras do exame”. Para o MEC, o fato de um repórter ter conseguido informar qual era o tema da redação de dentro de um local de prova não configura falha de segurança — já que ele não usou o aparelho dentro da sala de aula nem recebeu informações sobre a prova por meio do aparelho. (LK)

Análise da notícia

O grande rito de passagem na vida dos jovens brasileiros é o exame vestibular das universidades. É um tormento que mobiliza suas energias e recursos, muitas vezes sob pressões familiares quase insuportáveis. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado para livrar os jovens desse falso tudo ou nada, enveredou pelo mesmo caminho. Neste final de semana, mais uma vez, se transformou num drama para milhares de jovens.

Gabaritos com cabeçalho invertido, desencontro de informações em locais de prova, vazamento do tema da redação e outras falhas tumultuaram as provas. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais garante que os candidatos prejudicados poderão recorrer, mas o estrago já está feito.

O ministro da Educação, Fernando Haddad, diante do ocorrido, mergulhou. Está cotado para continuar no cargo no governo Dilma Rousseff. Mesmo depois do vexame internacional do Brasil no quesito Educação, precisará de um bom pistolão. Ainda somos um dos países com maior número absoluto de analfabetos, ocupando a 92ª colocação nesse item do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).