Qual será a posição do governo brasileiro na Conferência Mundial sobre Educação Superior da Unesco?

"É preciso que a tese da educação como bem público seja fortalecida entre os países da América Latina e Caribe"

Murilo Silva de Camargo é professor da Universidade Federal da Bahia, foi pró-reitor de ensino de graduação da Universidade de Brasília e membro da comissão ministerial (MEC) que elaborou as diretrizes do Programa de Expansão e Reestruturação das universidades Federais Brasileiras (Reuni). Artigo enviado pelo autor ao "JC e-mail":

De 5 a 8 de julho próximo, em Paris, acontecerá a Conferência Mundial sobre Educação Superior da Unesco de 2009 (CMED-2009), cujo tema principal será "A Nova Dinâmica da Educação Superior". Este evento, considerado politicamente o mais importante desde a Conferência Mundial sobre Educação Superior da Unesco de 1998, tratará da evolução e mudanças da educação superior em todos os continentes.

Novamente, se debaterá e se proporá um posicionamento político sobre temática há muito discutida no mundo da educação: considerar ou não a educação superior como serviço passível de comercialização no âmbito global na Organização Mundial do Comércio (OMC), órgão que governa as relações comerciais entre as nações.

Em junho de 2008, na cidade de Cartagena das Índias, Colômbia, a Unesco/Iesalc promoveu um congresso regional de educação superior da América Latina e Caribe (CRES 2008), preparatória ao Congresso da Unesco em Paris 2009. Neste evento, foi votado e aprovado por ampla maioria um documento de posição dessa região que caracteriza a educação superior como "bem público". Nessa sessão de votação se propôs o termo "bem público social", mas houve reação acentuada dos representantes do capital privado na educação, lá presentes.

O Brasil teve uma participação política importante em Cartagena das Índias. Tendo em vista o estado de indefinições de posicionamentos políticos e a falta de articulação de vários países, representantes do governo brasileiro propuseram a realização de um seminário internacional no Brasil em março de 2009 para viabilizar o necessário debate político para tomada de posições a serem levadas em bloco para a conferência mundial da Unesco de 2009.

Esse seminário seria realizado no contexto de um Congresso Nacional sobre Educação Superior em planejamento para ser realizado no mês de março, já passado. Se fora como planejado, haveria tempo e espaço político para os debates e articulações entre as nações da América Latina e Caribe para uma posição política regional. Esse congresso nacional sobre educação superior e o seminário latino-americano não aconteceram, e ainda não se conhece uma agenda proposta para eles.

Qual a importância de uma posição política nacional na Conferência Mundial sobre Educação Superior da Unesco de 2009? A posição dos governos e sociedade organizada em fóruns mundiais como esse fortalece as decisões políticas que são tomadas e levadas pelas nações no âmbito da OMC.

Desde a década de 1990, países como Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália advogam a regulamentação da prestação de serviços de educação no âmbito da OMC. No final dessa década e até o início desse século, o governo brasileiro teve posições convergentes com este discurso, ainda que sem manifestar publicamente (Ex., não se conhece publicamente o discurso do então ministro da educação Paulo Renato em reunião sobre educação superior promovida pela OCDE e Banco Mundial, em maio de 2002).

Em 1998, no Congresso Mundial de Educação Superior da Unesco, mais de 180 países se posicionaram por considerar a educação como "bem público" e contrários à regulamentação de serviços de educação na OMC.

Na época, a Comunidade Europeia estava dando seus primeiros passos na organização do espaço de educação superior europeu através da implementação do Tratado de Bologna. A posição dos países da Comunidade Européia então foi de se alinhar com a maioria pela educação como "bem público".

O peso político da Europa teve influência importante nas negociações sobre o assunto na OMC. Mas também deve-se considerar que essa posição europeia foi considerada por muitos como circunstancial, na medida em que os países da Comunidade ainda não tinham um espaço de educação superior unificado, organizado, permeável, flexível e com níveis de acreditação internacionais.

Hoje, o espaço da educação superior da Europa tem alto grau de organização com muitas das metas do Tratado de Bologna já atendidas, e muitos dos seus objetivos políticos podem ser observados na prática.

Hoje, a educação superior na Europa tem capacidade de competição com o sistema norte americano. Inclusive, nos dias atuais se verifica um alto fluxo de estudantes estadunidenses em universidades européias, o que corrobora um nível de organização alcançado pela Europa.

Nesse novo contexto da Europa o que se pode esperar do posicionamento político de seus países, ou do bloco europeu? Haverá no congresso da Unesco de 2009 um alinhamento europeu com o resto do mundo como em 1998? E se não houver esse alinhamento, a tese de educação como "bem público" se sustenta politicamente na OMC?

É preciso que a tese da educação como bem público seja fortalecida entre os países da América Latina e Caribe. É preciso que a liderança que o Brasil exerce na nossa região se manifeste e organize os debates e favoreçam as expressões políticas em defesa da educação como um bem público e social. É preciso que o governo brasileiro se movimente nessa direção e rompa a inércia que se deixou criar.

São tempestivas as perguntas: Qual a razão da ausência de discussões e do (falta de) posicionamento do governo brasileiro? Esvaziamento ideológico ou, o que é ainda pior, simplesmente o laissez-faire?

Se o governo brasileiro não organiza o debate sobre o assunto como havia anunciado em Cartagena das Índias em 2008, é preciso que os defensores da educação pública brasileira se organizem, se manifestem e façam o necessário debate.

Deve-se lembrar que se hoje as universidades públicas brasileiras são reconhecidas pela alta qualidade científico-acadêmica e pela alta relevância para a soberania nacional, é porque historicamente toda academia, incluindo seus movimentos docente e estudantil, lutam por uma educação superior pública, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada.

Principalmente, agora nesse momento de forte expansão das universidades federais brasileiras não se pode e não se deve abrir mão dessas discussões para que o governo brasileiro assuma com todas as letras a defesa no âmbito internacional da educação superior como "bem público social".