Terceirizados e precarizados, novas vozes na universidade

A paralisação dos empregados terceirizados, talvez inédita, cumpriu papel pedagógico para uma parcela dos estudantes

O violento conflito envolvendo seguranças e estudantes no campus da UERJ da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em maio último, foi apenas o momento mais “espetacular” da crise pela qual passam as universidades públicas federais e estaduais, algumas delas convivendo há semanas com greves de professores ou de funcionários administrativos.

Também em maio, cerca de 200 estudantes ocuparam, por duas semanas, os salões da Reitoria da UFRJ, até arrancarem do seu Conselho Superior (CONSUNI) um conjunto de resoluções favoráveis às suas demandas. Várias faculdades da UFRJ suspenderam suas atividades docentes por também duas semanas devido à paralisação dos serviços prestados por empregados terceirizados de segurança e limpeza que estavam há meses sem receber seus salários.

Em junho, os estudantes da UFRJ, em que pese terem suas reivindicações atendidas pelo CONSUNI, declararam-se em greve. Tudo indica que a crescente de agitação, envolvendo também parcela do corpo docente, está apenas nos começos.

Em boa parte, esse clima pode estar expressando a enorme insatisfação da classe média e de setores sociais emergentes com a situação do País, inclusive frustração com os rumos tomados por este início de segundo mandato Dilma Rousseff, nisto incluindo-se o corte de R$ 9,5 bilhões no orçamento do MEC.

Mas no caso específico da UFRJ e, muito provavelmente, de outras universidades federais e estaduais, nota-se um clima de tensão e de difícil diálogo que está surpreendendo tanto professores experientes de muitos outros momentos de luta, como também lideranças estudantis formadas em modelos clássicos de disputa política.

A paralisação dos empregados terceirizados, talvez inédita, ao menos muito rara, cumpriu papel pedagógico para uma parcela dos estudantes: os banheiros entupidos, o sentimento de insegurança nos campi e demais consequências dos braços cruzados de faxineiros, seguranças e porteiros deram visibilidade a esses profissionais, invisíveis no funcionamento diário da universidade. Pela ausência, a comunidade universitária deu-se conta da importância da presença desses homens e mulheres que cumprem funções ditas “braçais”, essenciais, porém, ao bom funcionamento das demais funções “intelectuais”.

“Ocupemos a Reitoria porque não podemos tolerar que nosso estudo dependa de trabalhadores em condições de escravidão”, declaravam os estudantes durante a ocupação. No entanto, para além dessa generosa identidade com a condição do outro, as manifestações dos estudantes foram protagonizadas, sobretudo, por uma parcela de alunos e alunas que se aproxima dos empregados terceirizados porque com eles compartilha também condições precárias de subsistência e de experiência marginalizada de vida universitária: são os cotistas e egressos de outros estados via ENEN ou SISU, que moram no alojamento estudantil da UFRJ, insalubres e favelizados; dependem de transportes públicos; precisam dos “bandejões” para se sustentarem.

Foram eles que mais tencionaram a favor de manter a ocupação, até porque a volta para uma suposta “normalidade”, significava-lhes retornar a condições degradantes de vida que o entrosamento com a luta e solidariedade de outros tornara mais suportável. Um cartaz explicitava: “Quando a ocupação acabar, você volta para casa, nós voltamos para ao alojamento”.

Alunos, professores e funcionários da UERJ na rua de acesso ao Palácio Guanabara, no Rio de Janeiro, em maio

Como sempre acontece, a crise recai, primeiro, sobre os elos sociais mais frágeis. Com o corte no orçamento do MEC, a segunda vítima foi, depois dos empregados terceirizados, um segmento estudantil que já acumula experiências de exclusão ou discriminação. Esses estudantes que se rebelaram quando o atraso das bolsas ameaçou-lhes a subsistência, expressam a expansão precarizada das universidades públicas nos últimos anos.

A ampliação das políticas de acesso ao ensino superior focada nos setores historicamente excluídos (e tentando disfarçar a ausência de reais políticas para incrementar significativamente a qualidade do ensino básico), não tendo sido acompanhada por políticas de permanência (alimentação, moradia, creche etc.), provocou o crescimento simultâneo de diversidade e desigualdade no próprio interior das universidades públicas, agora refletindo-se na polarização da comunidade acadêmica.

Parece que se rompeu o espírito de corpo tipicamente universitário que, politicamente, no meio estudantil, se expressava pelas práticas também de ensino-aprendizagem (políticas) de seus centros e diretórios acadêmicos. À margem deles, afirmam-se pautas e formas de ação sustentadas por múltiplos coletivos auto-organizados referenciados às lutas contra racismo, homofobia, machismo, entre outras manifestações identitárias.

No contexto de uma sociedade cada vez mais individualista, esses segmentos percebem de forma fragmentada sua inserção em diferentes níveis de subordinação e opressão, enquanto desigualdades simbolicamente naturalizadas como ideologias de resistência e rejeição. Assim, expande-se um ambiente onde cada grupo percebe os demais como potenciais opressores, eventuais adversários, sempre como “diferentes”, diante dos quais será, eventualmente, possível se juntarem para obter algo, mas muito difícil se unirem por qualquer causa que transcenda seus limites identitários, menos ainda se for algum projeto universal de superação das diferentes explorações, opressões e violências.

Os campi parecem não estarem polarizados apenas pela crítica renovadora da juventude à sociedade que sempre naturalmente envelhece mas, no entanto, nisto também se prepara e prepara os seus jovens para recebê-los inovadoramente.

Salas, corredores e pátios exibem-se agora agressivamente fragmentados por experiências indiferentes a projetos como aquele expresso um dia por Rosa Luxemburgo, que conclamava à luta por um mundo “onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes, totalmente livres”. Projetos esses que radicam na própria etimologia da palavra universidade.

*Marcos Dantas é Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ. Kenzo S. Seto é estudante de graduação da mesma ECO-UFRJ.

Publicação Carta Capital