UFCSPA – “É urgente que a sociedade centralize ações voltadas para as pessoas”.

Ela foi responsável por uma força-tarefa que produziu mais de dois mil escudos faciais para proteção de profissionais de saúde e dezenas de laringoscópios para intubações e peças para reposição em respiradores artificiais. A professora Gisele Orlandi Introíni, coordenadora do Laboratório de Inovação, Prototipagem, Educação Criativa e Inclusiva, é a entrevistada desta edição da série UFCSPA contra o Coronavírus.

Como você e o Laboratório de Inovação, Prototipagem, Educação Criativa e Inclusiva (Lipecin) têm atuado desde início da pandemia?

Estamos capitaneando iniciativas voltadas para a fabricação digital de dispositivos médicos identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional relacionada ao SARS-CoV-2. Acredito que, agora, seja urgente nossa sociedade centralizar ações voltadas para as pessoas. Especialmente elevando o nível de proteção aos profissionais da Saúde e se preocupando em maximizar as possibilidades de sobrevivência de quem se encontra em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs). Nosso foco tem sido a confecção de escudos faciais (Face Shields), laringoscópios (para intubação), peças para reposição de componentes de respiradores e máscaras com Óxido de Zinco.

 

Na sua experiência profissional, como você avalia o impacto desta pandemia?

No meu recorte de realidade (espacial e temporal), considerando os privilégios que tive (e tenho) nunca vivenciei uma crise como essa. Ao ler o livro de Chimamanda Ngozi Adichie, intitulado “Americanah”, já na primeira página ela menciona que pessoas que vivem em “lugares de conforto afluente” estão acostumadas com “os adornos da certeza”. Cidadãos e cidadãs que tiveram/têm acesso a graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em um país como o nosso (de dimensões continentais, com desigualdades socioeconômicas gritantes e com 13,5 milhões de miseráveis, de acordo com dados pré pandêmicos do IBGE), geralmente, exibem em seu cotidiano os “adornos da certeza”. Segurança que garante confiança em discursos, textos, ponderações, gestos e planejamentos. Entretanto, quando uma situação como essa se deflagra, as seguintes certezas se pulverizam em dias e semanas: (i) Convicção de que temos “algum” controle sobre a nossa saúde: diante do agente patogênico com o qual estamos lidando ninguém sabe exatamente quem é suscetível ou não. O medo e o luto são protagonistas em diversificadas esferas. (ii) Direito de ir e vir das pessoas: subitamente algo garantido por lei nos é “suprimido” temporariamente para que cuidemos uns dos outros. O polido/recomendável/essencial é não tocar, não abraçar e não cumprimentar. As regras modificaram-se para zelarmos pela saúde coletiva. O confinamento e o isolamento social desencadearam uma cascata de ações que impactaram o orçamento de toda a nossa nação, tornando ainda mais vulnerável quem carece de recursos financeiros. (iii) Acesso aos espaços públicos: a migração de nossas relações profissionais e pessoais para plataformas digitais compele as pessoas a trilharem terras incógnitas. A dominarem, num curto espaço de tempo, recursos da web para mimetizarem situações que antes ocorriam presencialmente. Portanto, as incertezas, hoje, são as intérpretes principais. A pandemia é ainda mais brutal para aqueles e aquelas que se encontram no espectro de invisibilidade social. Portanto, o maior desafio é minimizar o sofrimento do próximo. Mesmo com diminutas atitudes podemos aliviar o fardo de quem se encontra em dificuldades maiores que as nossas.

 

Que impactos você sentiu em sua vida pessoal ao decidir atuar de forma direta no combate à Covid-19?

O principal impacto foi o aumento exponencial de minha preocupação com os alunos e alunas que trabalham presencialmente comigo. Não me refiro unicamente às possibilidades de contágio (adoecimento), mas também ao deslocamento dos e das integrantes da força-tarefa de suas respectivas casas para o Centro de Inovação UFCSPA-Santa Casa. A cidade de Porto Alegre tornou-se ainda mais violenta. Sabe-se que o empobrecimento da população pode contribuir para o aumento da violência urbana. Adicionalmente, as restrições orçamentárias a que muitas famílias estão jungidas reduz o acesso do corpo discente ao ensino de qualidade. E essa realidade me fragiliza e me entristece, não (unicamente) como professora, mas como cidadã. A possibilidade de exclusão digital também deve ser levada a sério em todas as universidades. São essenciais condições igualitárias de acesso à internet, pois estamos diante da emergência, de novos modos de discriminação em uma conjuntura de contrastes ainda mais profunda.

 

Como avalia o papel das universidades no combate à pandemia?

As universidades têm se esmerado para desenvolver diversificadas linhas de ação que contribuem para o combate a pandemia. Tenho acompanhado e lido (com muita atenção) as ações da Unicamp, USP, Unesp, UFRGS, UFPel e UFCSPA. Iniciativas que merecem ser lidas: (i) o desenvolvimento de sistema que monitora presença do novo coronavírus no ar (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo); (ii) a constatação de que hormônio do exercício pode modular genes relacionados à replicação do novo coronavírus (Universidade Estadual Paulista); (iii) a coleta de dados do maior estudo de soroprevalência feito no país (para medir a proporção de pessoas com anticorpos contra o SARS-CoV-2), o Epicovid (Universidade Federal de Pelotas) e tantos outros que mostram como a educação pública de qualidade faz a diferença na vida da sociedade.

 

A pandemia provocou uma série de mudanças coletivas e individuais nas sociedades de todo o mundo. Você acredita que alguns desses reflexos irão permanecer após o fim da crise?

Eu não sei se é adequado utilizar a palavra “acreditar”. Eu gostaria que muitas mudanças fossem incorporadas. Sabemos que o planeta não suporta mais o consumo desenfreado de bens e serviços. Uma redução/modificação de nossos padrões de consumo aconteceu nos últimos meses. Com as paralisações generalizadas, as emissões globais diárias de carbono caíram drasticamente em comparação ao ano passado. Mas assim que as restrições forem “afrouxadas”, voltaremos para onde estávamos? Possivelmente! Sem apreço pela incrível biodiversidade de nossos biomas. Sem políticas claras para conter o desmatamento; restaurar terras degradadas; melhorar a subsistência em comunidades rurais pobres; e reduzir as emissões de gases de efeito estufa, eu não consigo visualizar a permanência de reflexos após a crise. Pelo contrário, como pesquisadora, sei que o aquecimento global tornará ainda mais difícil a sobrevivência na Terra, maximizando as áreas de conflitos por recursos naturais.

 

Para muitos dos nossos alunos de graduação, esta é certamente a principal crise sanitária pela qual passaram. Você acha que toda essa situação deixará marcas na formação dos novos profissionais de saúde?

Inegavelmente! Para alguns alunos e alunas, a pandemia torna tangível a relevância de suas áreas de atuação para o cuidado assistencial. Num momento como esse, como não valorizar os profissionais e as profissionais que atuam no frontline? Medicina, Enfermagem, Fisioterapia, Nutrição, Psicologia, Informática Biomédica, Biomedicina, Gestão em Saúde entre outros campos tão recrutados para mitigar os efeitos danosos da Covid-19. Outro efeito é o reconhecimento da importância das atividades presenciais (com afeto, engajamento e proatividade) e ocupação dos espaços públicos. Infelizmente, para algumas pessoas da comunidade acadêmica, as lembranças da pandemia serão acompanhadas por sofrimento e dor pela perda de entes queridos ou por sequelas orgânicas desencadeadas por eventuais adoecimentos.

 

Que mensagem você deixa para a comunidade universitária?

“Não há alternativa” (“There is no alternative” – TINA) era um slogan frequentemente usado pela primeira-ministra conservadora britânica Margaret Thatcher. A frase foi usada para pavimentar a afirmação de Thatcher de que a economia de mercado é o único sistema que funciona, e que o debate sobre isso acabou. Ao ler livros, escutar podcasts, assistir a palestras de pessoas com diferentes mindsets, diariamente, refuto a ortodoxa retórica e afirmo “Há diversificadas e belas alternativas”. Cabe a nós sermos ativistas e desafiar os protetores do passado. Somos os diretores e intérpretes de nossas existências. Está em nossas mãos, como sociedade, lutar por condições que viabilizem a continuação de humanos (em sua expressão mais generosa). Se continuarmos a agir guiados pelo “EU” em oposição ao “NÓS”, infelizmente o Homo Sapiens permanecerá com pouquíssimas possibilidades de sobrevivência diante da desertificação, episódios pandêmicos, eventos belicistas, queda da produção de alimentos e outros fenômenos previstos pela Ciência. Que tenhamos mais circulação de bits e pouca circulação de átomos. Que o conhecimento seja disseminado livre e abertamente. Que as nossas comunidades sejam inclusivas e que no futuro possamos chamá-las de não-excludentes (pois englobarão de forma orgânica e abrangente a miscelânea de fenótipos e comportamentos de nossa espécie). As minhas últimas palavras são de agradecimento aos corajosos e corajosas ativistas que integram a força-tarefa Lipecin que tornam o intangível, tangível. Mesmo em um terreno que não oferece certezas, encaram de peito aberto os desafios da fabricação digital e me inspiram, cotidianamente, a me tornar um ser humano melhor.