UFSB – Consciência Negra

Neymar Ricardo Santos, servidor da Pró-Reitoria de Sustentabilidade e Integração Social (PROSIS), membro da Comissão de Política Afirmativa (CPAf) da UFSB, concedeu entrevista à ACS sobre a temática da Consciência Negra, analisando também a eficiência das políticas públicas para a população negra baiana e brasileira. Confira!

ACS: O dia ou o mês da Consciência Negra é algo a se comemorar?

Neymar: Com toda certeza! Em nosso país, tivemos diversos movimentos que, das mais variadas formas, tentaram – e ainda tentam – ocultar a negritude nas questões estética, econômica, intelectual e sociocultural. Houve projetos, como o do embranquecimento nacional, financiado outrora pelo próprio Estado e, após seu fracasso, o da miscigenação, que tentaram nos tornar algo diferente do que somos. Então, sim, precisamos comemorar, ainda que tenhamos apenas um dia oficial para refletir sobre o ser negro no Brasil. Mas, devemos estar cientes de que esse pequeno e singelo ato está longe de minimizar o prejuízo causado pelos mais de 300 anos de escravização do povo negro. Por isso, temos, nesta data, uma maneira de afirmar cada vez mais nosso ser negro, percebendo e valorizando nossa cultura nacional, plena de sabores e ritos de matrizes africanas, nossa língua, repleta de palavras oriundas das línguas do continente africano e, assim, extirpar aos poucos o racismo, que se esconde num véu que já permitiu chamar o Brasil de “Paraíso Racial”, mas que, na prática, se mostrava o seu terrível e extremo oposto.

ACS: Como você avalia as políticas públicas para a população negra no Brasil no sentido da reparação histórica da dívida da sociedade com as pessoas negras?

Neymar: Ainda estão muito aquém do que é necessário para não só reparar a dívida histórica que nossa sociedade tem para com a população negra, mas também os danos causados no dia-a-dia, quando se percebe que, ainda hoje, é notória a discrepância representativa de nossa população em diversos espaços. Na saúde, temos que a população negra é a que mais sofre com a falta de políticas específicas no trato de doenças que pesam mais sobre essa população. O Movimento Negro tem trabalhado e militado há muito tempo, por exemplo, na luta por maiores intervenções em doenças como a anemia falciforme. Outra questão sobre a saúde é que 60% das mortes maternas decorrentes do parto são de mulheres negras. 90% destas mortes poderiam ser evitadas pelo correto atendimento das mães nas maternidades. Outro problema importante são os programas de habitação, que têm se mostrado verdadeiros movimentos de segregação das populações mais pobres e, não coincidentemente, mais negra, ao invés de promoverem cidadania. Grande parte dos conjuntos habitacionais do Minha Casa, Minha Vida são alocados em terrenos extremamente isolados e afastados dos centros urbanos. Tem também a segurança, que registra altos números de assassinatos de jovens negros, além dos presídios estarem abarrotados de pessoas negras. Todas essas políticas públicas poderiam ter mais eficácia se fossem aplicadas por pessoas que entendem as demandas dessa população, principalmente, por serem oriundas dela. Assim, a maior política pública que podemos ter é o acesso cada vez maior da população negra à educação de qualidade, que permita maior acesso a profissões que abarcam a saúde, segurança, habitação e educação.

ACS: E quanto às políticas públicas no Estado da Bahia, o que você acha que avançou e o que ainda precisa avançar?

Neymar: No campo da Educação, acredito que houve grande progresso, principalmente no que diz respeito ao ensino médio e superior, com a organização e criação dos Institutos Federais e Universidades novas como UFRB, UFOB e UFSB. Puxando a brasa para nossa sardinha, a UFSB se propõe ser uma universidade com foco em um público mais popular, com uma política de assistência estudantil consolidada, apesar das restrições orçamentárias. Tem um Conselho Estratégico Social composto por membros da sociedade civil e movimentos sociais organizados, cria em seu organograma uma Comissão de Políticas Afirmativas composta democraticamente por membros das categorias que compõem a comunidade acadêmica e, de forma democrática, orienta as ações e recursos para acesso e permanência de estudantes oriundos(as) de comunidades populares. Isso me traz, sim, na visão bem microcósmica, uma melhoria significativa, por entender que haverá impactos a partir da geração que está ingressando e se capacitando na UFSB e em outras IES, pois serão os próximos atores na saúde, educação e segurança em nosso Estado. Talvez ainda tenhamos retrocessos e avanços pequenos se pensarmos nas demandas urgentes mas, pensando no longo prazo, creio que haverá melhora significativa.

ACS: Quais conquistas dos movimentos negros brasileiros e/ou baianos você destacaria como mais relevantes para serem lembradas neste mês?  

Neymar: Olha, nossa história está repleta de ações dos movimentos negros, tanto local quanto nacionalmente: a revolta do Malês, a greve dos negros escravizados no engenho de Santana, em Ilhéus, mas percebo que a resistência como um todo, da cultura negra, a todos os séculos de escravidão vivenciados no Brasil é, para mim, o mais forte e relevante.

ACS: Como e em que situações você vê, hoje, o racismo à brasileira se manifestar com mais ênfase?

Neymar: Acredito que, principalmente, no momento em que um(a) negro(a) acessa um local que foi sempre elitizado, seja pela simples matrícula em um curso de Medicina por cotistas negros(as) até o fato de pessoas devidamente credenciadas não conseguirem vagas em profissões para as quais estudaram e nas quais se diplomaram com louvor, simplesmente por serem negras. Em quase tudo é possível ver o racismo à brasileira, quando você começa a observar que, apesar de estar em um estado predominantemente negro, os outdoors ainda mostram em seus comerciais de vendas de apartamentos de condomínios de classe média imagens de famílias brancas. Quando se vai ao shopping e se percebe que as lojas voltadas para um público mais high society têm, em seu quadro de funcionários, pessoas brancas ou embranquecidas por procedimentos estéticos como chapinha nos cabelos, maquiagem para mudar a aparência considerada, pela sociedade racista, inadequada para aquele local. Isso tem um significado forte.

ACS: Que ações você considera importantes para a superação e o enfrentamento do racismo?

Neymar: Acredito que um diálogo sincero da condição racista do brasileiro e a conscientização daquilo que à primeira vista parece “bobagem”, mas que, ao se buscar as origens, apresenta profundo movimento de hierarquização racial, seja na fala, na estética, na escuta, no olhar. Além disso, é preciso que as diferenças étnico-raciais que temos em nosso país sejam valorizadas e não ocultadas. Temos que nos perceber como indivíduos inseridos numa cultura ainda fortemente colonial, enraizados em condutas por vezes racistas. E nos entendermos como responsáveis pelo que será propagado para as próximas gerações, fazendo escolhas conscientes de quais valores queremos que herdem de nós.

ACS: De acordo com a Diretoria de Percursos Acadêmicos da Pró-Reitoria de Gestão Acadêmica da UFSB, nos cursos de graduação da universidade, 320 pessoas com matrícula ativa se autodeclararam negras e 894, pardas. [Os dados podem conter imprecisões, pois nem todas as pessoas preenchem esse campo nos formulários]. Como você avalia a presença de pessoas negras e pardas na UFSB, considerando a realidade do Sul e Extremo Sul da Bahia?

Neymar: Na minha humilde concepção, não há distinção entre negro e pardo. Ser pardo é ser negro. A questão é que esta separação por cores tem sido amplamente debatida e, apesar de existirem diferenças no tratamento social entre um negro de cor preta e um negro de cor parda, conforme a professora Ana Carla Lima Portela [IFBA/Seabra), que conduziu um minicurso na UFSB sobre cotas raciais neste ano, há estudos que revelam, no que tange à condição socioeconômica desses subgrupos, muitas similaridades em suas posições sociais e econômicas. Peço desculpas aos(às) mais entendidos(as) sobre o tema se estiver trazendo algo equivocado aqui nesta questão, pois ainda sou um neófito nos estudos sobre as questões étnico-raciais. Mas, o que entendo em meu brevíssimo tempo de estudo do tema, é que o colorismo deve ser desestimulado nas autodeclarações, visto que ainda há no Brasil uma confusão sobre o pardo. O pardo é entendido, a meu ver, como negro que, devido à mestiçagem, não traz em si todas as características fenotípicas do negro não mestiço. Ocorre que todo pardo é mestiço, mas nem todo mestiço é pardo. E este entendimento se dá pelo fato de que, no Brasil, o racismo, conforme grandes estudiosos do tema como Oracy Nogueira e Kabengele Munanga, entre outros, é de marca. Ou seja, são os marcadores fenotípicos que, predominantes ou não no indivíduo, determinarão sua exposição ao racismo estrutural do Brasil. Isto em contraposição ao que ocorre nos EUA, por exemplo, em que o racismo se manifesta sobre aqueles(as) que têm em sua ancestralidade a presença negra. Desta forma, não podemos, principalmente no que tange às políticas públicas direcionadas à população negra, entender que todo mestiço é pardo. Se assim fosse, deveríamos entender que todos os seres, haja vista que a humanidade se gerou na África, são afrodescendentes e, por isso, devem ter acesso às políticas públicas direcionadas para esta população que, diante de uma sistematização e estruturação racista, sofre discriminação por suas características fenotipicamente negras serem predominantes. Precisamos entender e nos despir desse conceito errôneo que a sociedade brasileira atrela ao pardo como sinônimo de mestiço. Sobre a questão de presença e representatividade da população negra na UFSB, temos um número de 1.214 estudantes autodeclarados(as), conforme estes dados da DPA, de um total de 3.396, de acordo com a última pesquisa do perfil estudantil dos graduandos das IFES-2018, isso representa um pouco mais de 35% do corpo discente da UFSB que se autodeclararam negros(as). Pensando que estamos em um estado em que a população que se autodeclara negra ultrapassa os 80% do total, não posso ficar satisfeito com este índice. Acredito que, quando atingirmos um percentual que se aproxime dos 70%, teremos uma situação mais próxima da realidade local.

ACS: Considerando os dados e a resposta anterior, entendemos que, mesmo com o aumento do número de pessoas negras que ingressaram no ensino superior nos últimos anos, o quantitativo ainda é baixo.  Além das cotas para ingresso, o que você considera fundamental para que esse quantitativo possa aumentar?

Neymar: Acredito que, de imediato, medidas que evitem a utilização indevida das cotas. E também a conscientização de que as cotas, da forma como são aplicadas atualmente, excluem, no sentido de que uma pessoa que se candidata a uma vaga numa universidade tem que optar por cotas ou pela ampla concorrência. Um bom exemplo que observamos nos concursos públicos é que, caso o(a) candidato(a) obtenha nota suficiente para acessar vagas na ampla concorrência, é automaticamente colocado(a) na ampla concorrência e a vaga que ocuparia nas cotas fica para o(a) próximo(a) da lista dos(as) ingressantes por cotas. É curioso que algumas instituições que já criaram mecanismos de verificação de ingresso por cotas, ao perceberem que o(a) candidato(a) não faz jus à cota, indeferem o acesso pelas cotas e o(a) direcionaram automaticamente para a ampla concorrência, desconsiderando sua própria opção, beneficiando, portanto, o(a) não cotista que tenta usar o sistema de cotas, sendo que deveria ser excluído(a)  do processo. Em outros casos, como no SISU, a pessoa que se candidata por cotas, mas atinge pontuação para entrar por ampla concorrência, é impedido(a) de acessar a vaga, pela limitação do quantitativo de vagas para as cotas. Para além disso, as medidas de permanência são cruciais para que os(as) que já ingressaram não abandonem seus cursos por não poderem ter condições de mobilidade, alimentação e moradia garantidas durante o período tão intenso dos estudos, principalmente no caso  daqueles(as) que ainda precisam conciliar estudos com trabalho para sustentar-se e à família. Para o longo prazo, tem que ocorrer de fato uma transformação não só na educação de base como também nos critérios que contemplam epistemologias eurocêntricas. Uma ideia que Damião de Azevedo traz, no texto A Justiça e as Cores, é que, em alguns locais, EUA, por exemplo, existem formas de ingresso diferentes das adotadas no Brasil. Sabendo que um(a) jovem possui determinadas habilidades como, por exemplo, no esporte, na arte, nas ciências, etc., há convites feitos por Universidades para que esse talento integre o corpo discente. As universidades brasileiras têm a autonomia universitária garantida pela Constituição e, ainda assim, mantêm moldes engessados para as formas de ingresso de estudantes.

ACS: Para finalizar, você poderia passar uma mensagem pelo mês da Consciência Negra para a comunidade?

Neymar: Que a UFSB seja uma amplificadora e facilitadora da voz da população negra no Sul e Extremo Sul da Bahia. Que possamos afirmar cada vez mais a negritude que há em nós e que estejamos sempre atentos(as) e vigilantes sobre o que nos rodeia e possamos, com empatia, reduzir o ódio institucionalizado no Brasil através do racismo.

Facebook – Novembro: minha pele, tem voz

Também publicaram uma série em homenagem ao Novembro Negro na rede social.

1º Episódio 14/11 Em homenagem ao Novembro Negro, mostraremos algumas histórias de lutas, descobrimentos, consciência e resistência. Hoje, com a palavra, Adriano.

2º Episódio 20/11 Dia Nacional da Consciência Negra. Com essa data tão importante, vem também a continuação do “Novembro: minha pele, minha voz”, nossa série em homenagem ao Novembro Negro. Com a palavra, Rafael.

3º Episódio (em breve)