Entre um número e outro, pairam dúvidas sobre eficácia de um projeto cheio de ótimas intenções, mas que, para alguns, não combina com a realidade
Cláudia Izique escreve para o "Valor Econômico":
Apesar de carregado de boas intenções, o projeto de lei que reserva 50% das vagas nas instituições federais de ensino superior para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, aprovado em novembro pela Câmara dos Deputados, é alvo de duras críticas. "O projeto confunde inclusão social e ação afirmativa com política de cotas", diz Leandro Tessler, coordenador executivo da Comissão de Vestibulares da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A proposta, que já está sendo avaliada pelo Senado, combina uma política universalista, ao propor cotas sociais, com um viés étnico-racial, na tentativa de democratizar o acesso às instituições públicas. Prevê que metade dessas vagas deverá ser ocupada por estudantes autodeclarados negros, pardos e indígenas, e a outra metade, por aqueles oriundos de famílias com renda de até um salário mínimo e meio por pessoa.
"Em educação, os indicadores mostram que o corte é social", argumenta o deputado e ex-ministro da Educação Paulo Renato Souza (PSDB-SP), autor da emenda que contemplou grupos sócio-econômicos menos favorecidos e que foi acatada às vésperas da votação, por acordo entre parlamentares. "No Brasil, há uma sobredeterminação da questão racial pela questão social."
A cota de 50% das vagas, na avaliação de Tessler, é arbitrária e parece até cabalística. No Estado de SP, por exemplo, 89% dos alunos concluem o ensino médio em escolas públicas. A proporção sugerida, assim, está longe do que poderia ser considerado um estado de equilíbrio – no caso, impensável.
Pior que isso: a cota de vagas reservadas para esses estudantes nas Universidades públicas pode ser superior à demanda. No vestibular da Unicamp, por exemplo, o percentual médio de alunos egressos de escolas públicas que disputam vagas é, historicamente, de 30%. "Em cursos como o de medicina, a taxa média é de 20%", sublinha. Há, portanto, o risco de que uma proporção desequilibrada viole o princípio do mérito, que pauta as relações acadêmicas, comprometendo a excelência do ensino e da pesquisa. "Uma política de inclusão tem que levar em conta a demanda. É complicado tentar criar competência pela força da lei", diz.
O percentual de demanda, abaixo da cota fixada pela Câmara dos Deputados, tem, é claro, um componente de auto-exclusão, já que muitos não se sentem preparados para a disputa de vagas em Universidades consideradas de acesso mais difícil, não têm tempo para se dedicar aos estudos, nem interesse em pesquisa.
Mas há que se levar em conta também o efeito do Programa Universidade para Todos (ProUni), que oferece bolsas de estudos integrais e parciais a estudantes em instituições privadas. Criado em 2004 pelo governo federal, o ProUni já atendeu 385 mil alunos, a grande maioria deles matriculados em cursos profissionalizantes. "Os cursos da Unicamp são de formação e nem todos estão dispostos a enfrentar esse desafio", observa o coordenador da Comvest.
Tessler teme ainda que, se o projeto de lei for aprovado, a política de cotas sociais e étnico-raciais contamine de forma negativa a própria escola pública, induzindo-a a reduzir seu esforço de capacitação, já que os seus alunos poderão entrar na disputa por vagas concorrendo em "faixa própria". "Há o risco de as escolas públicas nivelarem seus alunos por baixo", adverte.
Pesquisa realizada por Nelson Cardoso Amaral, do Instituto de Física da Universidade Federal de Goiás (UFG), a pedido da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), colocou em xeque o mito de que a maioria dos alunos das Universidades públicas estudava em escolas privadas. E isso em 1997, quando ninguém pensava em política de inclusão social, antes mesmo de o projeto de lei de cotas, da deputada Nice Lobão (DEM-MA), o PL 73/99, começar a tramitar na Câmara dos Deputados.
Na época, Amaral constatou que as proporções para os dois grupos eram muito semelhantes. Nos cursos de matemática e letras, por exemplo, a maioria – 67% e 62%, respectivamente – tinha freqüentado escola pública. Nos cursos de medicina, odontologia e engenharia civil, a relação era inversa. "Só não encontramos proporcionalidade nos cursos mais concorridos."
Em 2004, quando a UFG começou a arquitetar seu sistema de cotas, Amaral reproduziu a pesquisa com os alunos da Universidade, e os resultados foram idênticos. A Federal de Goiás destina 20% das vagas a alunos de escolas públicas e a negros. "Esses alunos agarram-se aos cursos e conseguem ter um desempenho parecido com os que estudaram em escola privada. Mas o grande desafio é fazer com que, por razão de trabalho, não abandonem a escola."
Amaral endossa o projeto aprovado pela Câmara dos Deputados, mas lembra que o sucesso dessa política depende também de recursos federais para a manutenção de programas como bolsa-permanência, monitorias remuneradas, além de subsídio à refeição, à moradia e aos transportes. "Na UFG, que tem um campus longe da cidade, estamos construindo uma casa para abrigar 150 alunos." A expectativa é oferecer também vale-refeição, que será utilizado no restaurante do campus, e uma bolsa de meio salário mínimo. "Aí sim, o problema estará resolvido."
Antes mesmo da aprovação da lei, algumas Universidades públicas iniciaram experiências bem sucedidas de democratização do acesso, sem lançar mão do sistema de cotas. A própria Unicamp, por exemplo, instituiu em 2004 um Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (Paais), uma espécie de bônus no vestibular, que beneficia com 30 pontos os egressos de escolas públicas e com mais 10 pontos os candidatos negros e índios. Esse bônus é aplicado sobre um referencial de 500 pontos, atribuído à media do desempenho de todos os alunos em cada prova.
O Paais foi elaborado com base num estudo revelador feito por pesquisadores da Universidade: os estudantes provenientes de escolas públicas tinham maior potencial acadêmico do que os das escolas privadas. A mesma metodologia tem sido adotada no acompanhamento semestral dos alunos – condição exigida pela Universidade para a implantação do programa – e os resultados são semelhantes. Já no primeiro ano de implantação do Paais, o percentual de alunos de escolas públicas cresceu de 29% para 34%, sobretudo nos cursos de maior demanda, e a admissão de negros, pardos e índios aumentou 44%.
"Tem gente que acha que é papel da Universidade promover a inclusão social. Nós achamos que o objetivo é atrair jovens talentosos, tanto que realizamos o vestibular em 20 cidades em nove estados, e garantir sua diversidade", diz Tessler.
Apostando no sucesso do programa, a Universidade adotou uma série de iniciativas para aproximar-se desses potenciais candidatos e reduzir risco da auto-exclusão. Em janeiro, por exemplo, 100 alunos de escolas públicas farão estágios nos laboratórios da Unicamp. "A intenção é que eles percebam que são capazes de fazer ciência e tecnologia", explica Tessler. A grande maioria termina o período de estágio "extremamente motivada".
A Universidade de SP (USP) adotou, em 2006, um programa semelhante ao da Unicamp, o Inclusp, por meio do qual confere um bônus de 3% nas notas das duas fases do vestibular para alunos de escolas públicas. Um ano depois, a participação desses alunos no conjunto das matrículas cresceu de 24,7%, em 2006, para 26,7%. No desempenho geral dos alunos da USP, a nota média da turma do Inclusp, de 6,3, foi superior à de 6,2 dos demais estudantes.
O primeiro projeto de lei sobre sistemas de cotas começou a tramitar na Câmara em 1999, e tinha como base coeficientes de renda. Em 2004, foram apensados à proposta da deputada Nice Lobão outros sete projetos, entre eles o da senadora Ideli Salvati (PT-SC) que propunha sistema de cotas para negros e índios – e que, tendo sido aprovado na Constituição de Comissão e Justiça do Senado, foi remetido para a Câmara – e até o que instituía cotas para idosos. "A proposta aprovada em novembro foi um substitutivo que resultou de um acordo e estava para ser votada desde 2006", lembra a deputada. No Senado, o projeto terá como relatora a senadora Serys Slhessarenko (PT-MT) e tramitará como projeto de lei iniciado na Câmara (PLC) nº 180.
(Valor Econômico, 19/12)