SIM – Expansão e reestruturação
Aloisio Teixeira
"Para haver ensino primário, é necessário que exista antes o secundário, e para que o secundário funcione, é preciso que existam universidades"
(Anísio Teixeira)
Temos um problema -reconhecê-lo é um passo importante para resolvê-lo. O sistema brasileiro de educação superior é um dos mais excludentes do mundo. Apenas 13% dos jovens entre 18 e 24 anos nele estão matriculados e menos de um quarto em instituições que articulam ensino, pesquisa e extensão com qualidade; a maior parte delas são as universidades públicas.
Nos países mais desenvolvidos da América do Norte, da Europa e da Ásia, os percentuais alcançam 70% ou mais. Na América Latina, a média é superior a 30%. Esse quadro agravou-se nos anos 90, quando acelerou-se o processo de encolhimento do segmento público. O governo da época via o investimento no ensino superior como um gasto, submetido a critérios de "eficiência" e "produtividade". O argumento era o de que a prioridade deveria estar voltada para a educação básica, e não para a superior, em vez de considerá-las como partes indissociáveis de uma mesma estrutura, como alerta Anísio Teixeira há mais de 70 anos.
Alguma coisa mudou nos últimos anos: reabriu-se o diálogo entre o MEC e as universidades, foi-se o tempo das intervenções, respeitou-se o direito das universidades federais de escolher seus dirigentes, as propostas apresentadas pelo MEC foram prévia e amplamente divulgadas e discutidas publicamente, recuperaram-se orçamentos, retomaram-se concursos para contratação de docentes, criaram-se novas universidades federais e novos campi. O sistema público federal de educação superior está recuperando o protagonismo perdido.
A parte mais significativa, porém, constitui-se dos programas de expansão e reestruturação nas universidades, agora combinados com o novo Enem. Muitos ainda acreditam que o "vestibular" é um "mal necessário". Mas ele é muito mais que isso: é parte do mecanismo perverso de exclusão e promoção da desigualdade. E, como tal, deve ser enfrentado e superado. Já há relativa consciência do problema. Instituições vêm adotando mecanismos alternativos e complementares ao vestibular: cotas raciais, sociais ou para escola pública, utilização total ou parcial do Enem, sistemas de bônus em pontuação, avaliação paralela na rede do ensino médio.
A proposta do MEC -usar o Enem como subsídio para o acesso às universidades federais- pode ser o ponto de partida para a revogação desse mecanismo perverso, para a democratização do acesso e para a consolidação do caráter público dessas instituições. Sobretudo porque é parte indissociável do processo de expansão e reestruturação em curso, que já aponta para a duplicação do número de vagas no sistema federal. Mais vagas, mais recursos, novos mecanismos de acesso e políticas ativas de assistência estudantil é o caminho trilhado.
Essas mudanças não poderiam deixar de gerar dúvidas e resistências. Devemos enfrentá-las com a certeza de que se trata de uma proposta em construção para ser testada desde já e aperfeiçoada com a experiência. Um ponto pode ser indicado: estender a prova a todos os anos do ensino médio, para que se possa utilizar não apenas o resultado de uma única bateria de exames, mas o de três anos. Do ponto de vista didático-pedagógico, isso eliminaria os problemas de um processo de avaliação de mérito em uma única rodada de provas, além de potencializar o impacto nos currículos do ensino médio.
Não devemos esperar resultados imediatos em termos de modificações da composição social ou da distribuição regional dos novos ingressantes. Os resultados virão em prazos mais longos, desde que tenham continuidade as políticas de expansão e que os mecanismos inovadores de ingresso sejam aperfeiçoados. Tudo isso é só o começo. À medida que a sociedade consolide a consciência de que esse é o caminho para a construção de uma nação soberana e progressista e de uma sociedade democrática e socialmente justa, o que agora é apenas um programa de governo poderá tornar-se uma política de Estado, impossível de ser revogada, quaisquer que sejam os governos.
ALOISIO TEIXEIRA , doutor em economia pela Unicamp, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e reitor dessa universidade.
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NÃO – Quem se beneficia dessas alterações?
Sandra Zákia Sousa e Ocimar Alavarse
Uma das alterações que o Ministério da Educação (MEC) vem anunciando em relação ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) é a sua utilização com o fim de selecionar, de modo unificado, os ingressantes das universidades públicas federais. A proposta se apresenta tendo como principais objetivos democratizar as oportunidades de acesso às vagas federais de ensino superior e induzir a reestruturação dos currículos do ensino médio, provocando melhoria de sua qualidade. No caso das instituições federais, o que se espera é que ampliem o uso dos resultados do Enem no processo seletivo, integrando-os, com maior ou menor peso, na composição dos critérios de classificação dos candidatos. No caso das instituições não federais de ensino, estaduais ou privadas, como já ocorria, é optativo seu uso para fins de seleção de alunos.
Não nos esqueçamos, no entanto, de que o vestibular com caráter seletivo já deixou de existir em algumas instituições de ensino superior (IES), nas quais há mais vagas que candidatos para determinados cursos. Para as instituições que selecionam e que vierem a usar os resultados do Enem, não se identifica alteração de grande monta nos expedientes em curso: mantém-se o uso dos resultados de provas para classificar e selecionar alunos, como já acontece hoje.
Daí a indagação: a mudança proposta no Enem garante a consecução dos objetivos de democratização do acesso ao ensino superior e de indução de melhoria no ensino médio? Parece-nos que não. Quanto à democratização do acesso, não há evidências de que será alterado o perfil dos ingressantes no ensino superior. Tampouco se supõe que possa incidir, massivamente, na escola média.
Os estudos sobre perfil de ingressantes nas IES têm indicado que o nível socioeconômico dos vestibulandos é uma variável que tem muita influência nas suas possibilidades de ingresso, pois, usualmente, o nível socioeconômico do indivíduo viabiliza a frequência a uma escola básica de melhor qualidade, além de maior acesso aos bens culturais disponíveis. A proposta apresentada pelo MEC não altera essa realidade, pois, apesar de poder facilitar a participação de jovens em processos seletivos de instituições de ensino superior de todo o país, não viabiliza maior chance de ingresso na faculdade, já que não incide no perfil dos vestibulandos.
Além disso, lembramos que dados de edições anteriores do Enem evidenciam disparidade de desempenho dos alunos entre as regiões, mesmo quando são controladas as variáveis relativas ao nível socioeconômico. Portanto, a possibilidade de escolha nacional dará mais chances aos que já as têm. A seletividade social sob a aparente seletividade técnica pode se intensificar, ao favorecer o ingresso nas universidades públicas federais de alunos de maior poder aquisitivo e de regiões mais ricas do país. Ademais, os mesmos alunos que não têm suas chances objetivas aumentadas quanto ao ingresso em certos cursos ou instituições superiores são aqueles que, muito provavelmente, não teriam alterações nos currículos de suas escolas de ensino médio.
É de longa data, no Brasil, a capacidade que os vestibulares têm de influenciar o currículo de escolas. Mas isso não ocorre da mesma forma em todas elas. Embora não se possa generalizar o julgamento de escolas públicas e privadas, usualmente esse processo de alterações curriculares ocorre apenas num pequeno segmento, majoritariamente composto de escolas privadas. Na imensa maioria das escolas, inclusive pela percepção de alunos e de professores das chances objetivas de sucesso, o currículo não se pauta em processos seletivos e, por conseguinte, é menos suscetível aos impactos previstos pelo MEC.
Portanto, a despeito de as alterações no Enem serem apresentadas em nome da qualidade do ensino médio e da democratização do acesso ao ensino superior, tudo indica que não têm potencial de provocar mudanças nos currículos escolares e minorar o caráter seletivo dos vestibulares.
SANDRA ZÁKIA SOUSA, 56, pedagoga, doutora em educação, é professora da Faculdade de Educação da USP e vice-presidente da Anped (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação).
OCIMAR ALAVARSE, 49, pedagogo, doutor em educação, é professor da Faculdade de Educação da USP.
Tendências/Debates – Folha de São Paulo, 23.05