Superar a crise requer outro padrão de financiamento de longo prazo, novo modelo de produção e consumo e inédita governança global
OITENTA ANOS após a mais grave depressão econômica do século 20, o mundo capitalista convive com uma grave crise de dimensões financeiras, produtivas, sociais e políticas comparáveis à de 1929. A sua superação pressupõe, contudo, a construção de outro padrão de financiamento de longo prazo, de um novo modelo de produção e consumo sustentável ambientalmente e de inédita governança pública global do mundo.
Em síntese, esses são três componentes complexos não desprezíveis para sua imediata resolução e que podem implicar maior tempo do que atualmente imaginado para a saída completa da atual crise internacional.
Apesar disso, diversos países apontam mais rapidamente para o horizonte de recuperação econômica, fruto do êxito das políticas públicas nacionais anticíclicas adotadas.
Mesmo com a queda de quase 12% na produção industrial entre outubro de 2008 e março de 2009, o Brasil apresenta fortes indicadores, não só econômicos, de saída mais fortalecida da crise, sem ter interrompido, inclusive, a tendência de redução da pobreza absoluta e da desigualdade no interior da renda do trabalho nas principais regiões metropolitanas do país.
Essa conjuntura econômica e social nacional menos desconfortável não deveria obscurecer os crescentes desafios que a atual marcha de reestruturação capitalista impõe ao mundo.
Inicialmente, destaca-se a força da reconfiguração na divisão internacional do trabalho, já que o drástico aumento da capacidade ociosa nas grandes corporações transnacionais (apenas 500 respondem por faturamento equivalente a quase 50% do PIB mundial) resulta em profundo acirramento na concorrência intercapitalista e, por que não dizer, entre países.
Em tese, a ampliação da competição em ambiente de contida regulação internacional e inegável ineficiência das agências multilaterais pode levar ao novo quadro geral de conflitos, diretamente proporcional ao avanço dos apelos nacionalistas e de restrição dos mercados.
Simultaneamente, o processo de fusão e concentração do capital em torno das grandes corporações transnacionais tende a sufocar as oportunidades de expansão dos micro e pequenos negócios, uma vez que as fontes de crédito e de apoio fiscal tornam-se cada vez mais enviesadas pelo poder da grande empresa.
As hiperempresas transnacionais não apenas monopolizam praticamente todos os segmentos de mercado como também se tornaram tão grandes que não podem quebrar, sob o risco de causar o próprio colapso do sistema econômico.
Exemplo disso foi a manifestação da crise internacional em 2008 a partir da quebra de um grande banco estadunidense (Lehman Brothers) e a imediata e constante injeção de recursos públicos nas grandes empresas inadimplentes com o fim de impedir o avanço para uma depressão econômica mundial.
Em virtude disso, o papel "ad hoc" e hospitalar do Estado em relação ao setor privado -inimaginável até então pelos defensores do neoliberalismo- deverá levar à nova ossatura estatal. O curso da reestruturação mundial passa a exigir, em contrapartida, a formatação do superestado capacitado para as funções de monitoramento, regulação e intervenção da conduta das grandes empresas de escala mundial.
Do contrário, qualquer novo sinal de quebra dos quase monopólios globais pode implicar adicionais riscos de colapso das economias nacionais.
A importância do Estado torna-se maior na medida em que ele avance os investimentos concentrados na reformulação do padrão de produção e consumo menos degradante do meio ambiente.
A maior eficácia das ações públicas voltadas a minorar as emissões de gases de efeito estufa por meio da conscientização, tributação e promoção de alternativas ambientalmente sustentáveis passa a depender também da renovação da base tecnológica, como as iniciativas em torno da matriz energética renovável e da estrutura bioindustrial com crescente geração de empregos verdes.
A reinvenção do mercado a ser protagonizada pelo superestado não pode deixar de contemplar maior ação articulada e matricial com os micro e pequenos negócios, pois correm o risco de serem ainda mais sufocados pela consolidação da reestruturação somente em torno da grande corporação de dimensão transnacional.
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MARCIO POCHMANN , 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp. Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy).
Folha de São Paulo, 13/10