"Às vezes acho que sonhei isso tudo", diz o ministro da Educação, Fernando Haddad, aparentemente mais magro. "E o Enem não foi adiado." Há exato um mês, a prova tida como promessa para acabar com os vestibulares no Brasil foi cancelada depois que o Estado avisou o ministério do vazamento dos cadernos de questões.
O desabafo foi feito após entrevista exclusiva em que Haddad fez sua autocrítica sobre o escândalo que atingiu 4,1 milhões de estudantes. Ele lamenta não ter insistido para mudar as regras de contratação da empresa que aplicaria o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Sua ideia agora é eliminar licitações e ter uma entidade no Ministério da Educação para executar o exame todos os anos, a partir de 2010. "Será a Fuvest do MEC", disse, em referência à fundação que realiza há mais de 30 anos o vestibular da Universidade de São Paulo (USP).
E essa "Fuvest" seria o Centro de Seleção (Cespe), da Universidade de Brasília (UnB), uma instituição pública ligada ao governo federal. "Qual é a universidade que licita seu vestibular? Não conheço." Para ele, o Enem adquiriu dimensão e importância tão monumentais que só uma entidade que fosse responsável durante anos pelo exame conseguiria a experiência para fazer uma prova segura.
Haddad dormiu quatro horas na noite de 30 de setembro, em que foi avisado da tentativa de venda da prova, e acordou para a maior crise de seu ministério. Ele conta que não informou o presidente Lula do que estava acontecendo. "O presidente leu (a notícia sobre o vazamento) no jornal."
Um mês depois, qual sua análise sobre o vazamento do Enem?
Na minha opinião, o modelo de contratação exigido pelos órgãos de controle é inapropriado para o Enem. Se tomarmos a experiência internacional, vemos isso. Na França, que tem o BAC, e nos EUA, que têm o SAT (exames para ingresso nas universidades), não há licitação, são organismos ou entidades públicas ou semipúblicas que assumiram há muitos anos a responsabilidade pela execução da prova. Ela é elaborada por educadores, mas a aplicação e a logística estão sob responsabilidade de entidades que acumularam enorme conhecimento nessa área.
No Brasil é necessário licitação.
É uma orientação e a lei de licitação prevê excepcionalidades. Mas os órgãos de controle insistem nesse modelo. Qual é a universidade que licita seu vestibular? Não conheço. O maior vestibular do Brasil, o da USP, não licita. Tem uma fundação, a Fuvest, que há mais de 30 anos aplica o vestibular, acumulando conhecimento para garantir segurança. Quando o Enem era apenas um exame avaliativo, essa questão não era tão premente. Depois, em 2004, passou a ser o critério de distribuição das bolsas do ProUni. Em 2006 passou a ter os resultados por escola e agora está sendo considerado como processo seletivo de universidades. A importância só vem crescendo. Toda nossa preocupação vai para que tenhamos uma espécie de Fuvest dos exames do MEC.
Seria criada uma instituição?
Não. Seria o Cespe, entidade pública que pertence à UnB. Não estamos falando em contratar uma empresa, já existe uma entidade pública, que assumiria uma responsabilidade de longo prazo pelo exame. A cada ano se prepararia mais e melhor. Teria tudo para se transformar numa espécie de braço operacional do Inep para a execução dos exames nacionais, como Prova Brasil, Enem e Enade. Esse é o modelo que nós vamos reapresentar ao Tribunal de Contas para que seja reanalisado. Temos talvez o mais robusto sistema de avaliação do mundo. E temos um calcanhar de aquiles.
Por que o exame ficaria mais seguro nesse modelo?
É evidente que qualquer exame está sujeito a falhas. Sempre quando há um acidente, isso vale para qualquer atividade que envolva segurança, como tráfego aéreo, você repensa o processo. O dever do Inep é explicar aos órgãos de controle, CGU e TCU, a exuberância do Enem do ponto de vista logístico e a necessidade de uma contratação mais segura. A entidade vai acumular conhecimento ao longo dos anos, vai aprender com o processo.
O senhor já falou com o Cespe?
Já conversei com o reitor (da UnB). O Cespe é um parceiro antigo do MEC. Ele precisa se preparar para assumir os exames. Assim como o maior vestibular do País tem a Fuvest, o Enem teria sua entidade.
O episódio prejudica a adesão de mais universidades ao Enem?
Não creio que prejudique. Estávamos prevendo três anos para migrar do vestibular tradicional para o novo modelo. A questão da contratação é uma decisão crucial. Se nós mantivermos o modelo, temo que as pessoas possam desconfiar da segurança da prova. E como só se sabe disso depois que se aderiu ao Enem, fica difícil tomar a decisão sem saber quem vai aplicar a prova.
Isso dará um controle maior para o MEC da situação?
As vantagens são inúmeras. Há a capacidade de mobilizar forças estatais, por exemplo, que em um contrato não poderiam ser viabilizadas. Eventualmente, você precisa mobilizar a Marinha para chegar a um município no Norte do País. Em um contrato tipo comercial, haveria automática vedação de disponibilizar recursos além do contrato para socorrer o vencedor da licitação porque toda a responsabilidade é do contratado.
O senhor não tinha a percepção de que o sistema era frágil?
A partir do momento que havia só um participante da licitação, a técnica do Inep fez uma avaliação e concluiu que as empresas teriam condições de realizar. Nós temos órgãos do MEC que promovem centenas de licitações por ano. Há uma confiança na máquina pública e os dirigentes não podem se imiscuir nos detalhes administrativos sob pena de essa atitude ser considerada suspeita para tentar conduzir os processos. No Enem, as 12 edições foram feitas pelas mesmas instituições, Cespe e Cesgranrio.
E elas não participaram da licitação dessa vez. Por quê?
Não saberia responder pela Cesgranrio porque ela retirou a proposta. Mas soube que houve uma preocupação de recursos administrativos que poderiam comprometer o cronograma da prova. A previsão é que a disputa seria acirrada. A disposição do novo consórcio de vencer o certame era grande.
O senhor tinha informações sobre o que acontecia na gráfica?
Tinha informações de que o contrato estava sendo cumprido. O que me foi passado depois pelo Inep é que nos últimos dez dias houve uma mudança da logística não autorizada pelo MEC e foi isso que criou um ambiente inseguro e vulnerável, onde ocorreu o furto (uma sala montada em SP para embalar as provas).
Mas nos depoimentos à PF, os funcionários da gráfica dizem que o local todo era inseguro, não havia revista, entravam sem crachá, usavam celular.
Na opinião do gestor do contrato, o novo ambiente criado foi determinante. E na opinião do senhor?
Pelas informações que recebi até agora, quando há quebra no plano logístico aumenta a vulnerabilidade. Você contratou pessoas de última hora para o manuseio. Mas pode ser que a auditoria conclua que havia outras vulnerabilidades. Não descarto a possibilidade.
O senhor dormiu naquela noite?
Dormi, das 3 horas às 7 horas. Sabia que seria um dia difícil. Adiar a prova era só o pequeno componente. Em quatro dias úteis, nós adiamos a prova, fizemos um destrato com o consórcio, repactuamos com o consórcio anterior e divulgamos a data do novo exame. É um momento em que as pessoas diretamente envolvidas ficam debilitadas. Quatro pessoas do Inep tiveram de ser socorridas, hospitalizadas, duas estão de licença médica.
Em que momento o presidente foi avisado do vazamento do Enem?
Eu não sei dizer.
Não ligou para ele?
Não.
Como ele soube então?
Provavelmente ele leu no jornal. Que horas eu ia ligar para ele? Suponho que o ministro Franklin Martins tenha comunicado a ele assim que soube.
O senhor quer ser o ministro que acabou com vestibular?
Esses processos sociais são de longa maturação. Eu entendo que o marco está estabelecido para pôr fim àquilo que é uma anomalia no Brasil. Ter iniciado esse processo foi fundamental e nós vamos concluir, o Brasil vai concluir. A decisão foi comemorada pelos principais educadores do País. E espero que esse incidente não seja usado de pretexto para adiar isso.
O vazamento leva à perda de confiança nas avaliações?
O vazamento se resolve com a realização da nova prova. A prova não foi realizada, isso é importante dizer, graças ao bom jornalismo que nós temos no Brasil. Um jornalismo que checa fonte e dá oportunidade de as pessoas se informarem e tomarem decisões com base nisso. Isso vale para o poder público também, que muitas vezes é informado pelos meios de comunicação. Isso é muito bom porque permite ao cidadão e à autoridade tomar decisões. Se ela tivesse se realizado, se pessoas tivessem se matriculado com base nos resultados, isso seria muito ruim.
O senhor quer ser candidato ao governo de São Paulo?
Sinceramente, eu nunca pensei nesse assunto. Primeiro porque as tarefas do ministério me impedem de sair de Brasília. Se for verificar minha agenda, é muito interna. Saio com o presidente para inauguração de obras. Eu sei que existe uma movimentação de algumas pessoas ligadas ao PT que nutrem a expectativa de que eu possa vir a me candidatar. O presidente, quando me convidou para permanecer no cargo, foi para ficar quatro anos. Eu tenho um compromisso com o presidente Lula.
Se candidataria para um cargo no Legislativo?
Não é meu perfil.
Continuaria ministro no caso de um eventual governo Dilma?
Ninguém merece (risos). Ministro não é uma profissão, minha profissão é professor. Eu dediquei muitos anos da minha vida na academia estudando o Estado, a organização da sociedade, é gratificante poder colaborar com um governo no qual eu acredito, com um presidente como o presidente Lula.
O Estado de São Paulo, 01/11