O governo anunciou a maior expansão das universidades federais da história. Mas os novos cursos estão funcionando com laboratórios sem equipamento, em lugares improvisados e com professores voluntários. Como a falta de planejamento aliada à pressa eleitoral em expandir o ensino superior está prejudicando a formação de milhares de alunos
O governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi o que mais expandiu o acesso às universidades federais na história do país. Em oito anos, foram anunciadas 14 universidades e 125 campi novos. Juscelino Kubitschek foi o único presidente a se aproximar dessa marca, com 11 universidades em cinco anos. Lula ampliou também o alcance das unidades já existentes no mais ambicioso programa de crescimento do setor: criou mais de 80 mil vagas, 70% de aumento em relação a 2003. Lula foi pessoalmente lançar e inaugurar grande parte dessas universidades, ocasiões em que se vangloriava sobre como o presidente sem diploma foi o que mais trabalhou pelo ensino superior. “De todos os presidentes que o Brasil teve, uma parte foi advogado, outra foi professor. Eu, torneiro mecânico, já sou o presidente que mais fiz universidades”, disse na inauguração da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, em Minas Gerais. Os números e as imagens foram largamente propagandeados na campanha eleitoral da presidenta Dilma Rousseff, em 2010. Foram citados também no último pronunciamento à nação, quando Lula se despediu em cadeia nacional no rádio e na TV com um discurso de balanço do governo. Nem Dilma nem Lula, porém, revelaram como as universidades conseguiram operar o milagre da multiplicação.
Em um giro rápido pelas novas universidades, não é difícil decifrar a equação. A expansão foi feita na base do improviso. Como a construção de prédios levaria anos, as novas universidades tiveram de recorrer a uma espécie de “puxadinho” para receber as turmas novas. No litoral do Rio de Janeiro, alunos assistem a aulas em contêineres. No Pará, 1.200 alunos vão estudar no espaço de eventos de um hotel. Algumas universidades recorreram às prefeituras, que “cederam” suas escolas municipais – em uma operação que vira de ponta-cabeça as prioridades do ensino público no país. A solução mais comum foi alugar espaços privados, como prédios comerciais, colégios e faculdades.
A improvisação se transformou na regra das novas universidades porque o motor da expansão parece ter seguido mais o ritmo da política que o da educação. Das 88 mil vagas criadas ao longo dos oito anos de governo, 46 mil foram abertas em 2009 – um ano antes das eleições presidenciais. Mas das 14 novas universidades anunciadas na campanha eleitoral, apenas quatro são realmente novas. As outras dez eram polos de universidades já existentes que ganharam reitoria própria.
O caso que mais chama a atenção é do campus da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) de Osasco, região metropolitana de São Paulo. Em abril de 2008, Lula foi à cidade para lançar a pedra fundamental do campus. No terreno de mais de 200.000 metros quadrados, plantou uma muda de jequitibá. A comitiva reunia, entre outros, o ministro da Educação, Fernando Haddad, o prefeito de Osasco, Emídio de Souza, a então pré-candidata à prefeitura de São Paulo, Marta Suplicy, e o então governador de São Paulo, José Serra. Em seu discurso, Lula fez questão de se referir à presença do deputado federal João Paulo Cunha (PT-SP), um dos réus do processo do mensalão. “Se não fosse ele, essa universidade não sairia. Toda semana ele infernizava a vida do Fernando Haddad”, disse Lula.
Quase três anos depois, o terreno está abandonado. A placa que anunciava as instalações está caída no mato, ao lado de um local que virou despejo de lixo. Não há sinais da muda de jequitibá. Mesmo assim, a federal de Osasco foi motivo de propaganda na eleição. De fato, as aulas vão começar em março, mas serão ministradas no prédio de uma faculdade municipal que foi desalojada pela prefeitura, a Fac-Fito, para dar espaço para a federal. Para abrigar os novos estudantes, os alunos da municipal foram transferidos para salas construídas no fundo do terreno. “É um absurdo. Eles vão tirar alunos de seu espaço sendo que a Unifesp tem um terreno há três anos para seu campus”, diz a professora Márcia Massaini, professora da faculdade municipal, demitida depois de organizar protesto contra a remoção. Dos quatro cursos que a Unifesp vai oferecer em Osasco, três já são oferecidos pela Fac-Fito.
O reitor da Unifesp, Walter Albertoni, diz que o terreno comprado pelo MEC, no qual já foram gastos R$ 15 milhões como pagamento das primeiras parcelas, não foi nem será usado nos próximos anos. Segundo ele, a decisão é não iniciar nenhuma obra enquanto não terminar os outros campi, que estão atrasados. Ele é claro em relação às motivações para a criação da unidade: “A abertura do campus de Osasco tem origem em uma demanda política”, afirma. “A decisão surgiu de um entendimento do prefeito de Osasco com o então presidente da República e o ministro da Educação.”
O projeto de expansão das federais começou em 2005 e ganhou músculo em 2007, com o programa para a Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni). Com o programa, ficou determinado que apenas as universidades que apresentassem um plano de expansão ao Ministério da Educação teriam mais verbas para investimento. Entre o primeiro e o último ano do governo Lula, os investimentos em ensino superior foram de R$ 10 bilhões para R$ 17 bilhões. “Ou você estava dentro ou estava fora. Quem ia perder uma oportunidade dessa?”, diz o vice-reitor da Universidade Federal do Espírito Santo, Reinaldo Centoducatte. Na criação do Reuni, todas as federais aderiram. A exceção foi a Universidade Federal do ABC, criada em São Bernardo do Campo, cidade de Lula, que tem plano de investimento próprio.
As universidades ganharam passe livre para gastar no aluguel e adaptação de espaços provisórios
Uma das orientações do Reuni é tornar mais eficaz a aplicação dos recursos do ensino superior. O Brasil, hoje, é um dos países que mais gastam por aluno do ensino superior e um dos que menos gastam por aluno da educação básica – uma equação que precisa ser mudada. Para diminuir os s custos do ensino superior, o ministério determinou que a relação de alunos por professor nas universidades deve crescer. Hoje, a média é de um professor para cada 11 alunos. A meta é que todas as universidades cheguem a 18 alunos por professor. Enquanto aumentam a carga de trabalho dos professores, porém, as universidades têm passe livre para gastar no aluguel e na adaptação de espaços provisórios, que serão devolvidos a seus proprietários.
Há dois anos, a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) abriu um campus na cidade de Joinville antes de ter a licença para construir em um terreno cedido pela prefeitura e pelo governo do Estado. As aulas começaram em auditórios alugados na Univille, uma faculdade municipal. Com a entrada da terceira turma, neste ano, o espaço não será mais suficiente. Por isso, a UFSC alugou um terreno dentro da faculdade onde vai construir um pavilhão de 1.000 metros quadrados com salas de aula, auditório e laboratórios. Segundo Acires Dias, diretor do campus de Joinville, o pavilhão será feito de aço para que possa ser removido. O campus vai ficar no local alugado no mínimo mais dois anos.
Os espaços provisórios prejudicam especialmente as turmas que precisam de laboratórios. Em Santos, cidade do Litoral Sul de São Paulo, a Unifesp teve de fazer uma reforma na rede elétrica de um dos prédios alugados, pois não atendia às exigências para a instalação de equipamentos. Os cursos existem desde 2005, mas a reforma só ficou pronta em janeiro. “Ao longo destes anos, ganhamos verba para projetos, mas não conseguimos instalar os equipamentos”, afirma Odair Aguiar Junior, professor da Unifesp em Santos. “Parte deles ficou dentro das caixas.” Segundo o reitor da Unifesp, Walter Albertoni, com a conclusão da reforma do prédio provisório, os equipamentos poderão ser instalados. Mas, em junho deste ano, o campus definitivo da Unifesp em Santos deverá ficar pronto. O que siginifica que os investimentos para adaptação do prédio alugado só servirão por alguns meses.
Problemas de laboratório não são exclusivos de universidades que estão em espaços alugados. No novo campus da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), em São Matheus, os estudantes de farmácia não têm laboratório de farmacologia nem farmácia-escola. Eliana Dias dos Santos, aluna do 4o ano, foi enviada para aprender a prática em drogarias locais. “Não é uma boa escola. Em vez de aprender o procedimento correto, você já começa a conviver com práticas erradas, como vender remédio tarja preta sem prescrição.” Eliana também reclama da falta de professores. Ela está habituada com os “aulões” – quando três turmas ou mais assistem à mesma aula para “aproveitar” o professor.
Para os cursos novos, o modelo incentivado é o que começa com o ciclo básico. Nele, alunos de cursos diferentes estudam as mesmas disciplinas nos dois primeiros anos. Além de ser um modelo elogiado por educadores, reduz a necessidade de contratação de professores, já que, nos primeiros anos, as salas têm de 100 a 200 alunos. Segundo Gilma Correa Coutinho, coordenadora da terapia ocupacional da Ufes, seu curso foi aberto com apenas dois professores das disciplinas específicas. “Enquanto era possível, nós cobrimos, dando mais aulas que o previsto”, afirma. “Mas agora que os alunos saíram do ciclo básico não dá mais, porque as aulas exigem conhecimento específico, como em geriatria e pediatria.”
O aperto é tanto que algumas universidades novas chegaram a usar um recurso bastante questionável: professores voluntários. Eles assumem disciplinas sem passar por concurso e sem receber salário. No início de sua expansão, a Ufes recorreu a esse expediente. Segundo a reitoria, porém, a universidade não usa mais esse tipo de “contrato”. Na Universidade Federal do Amapá, a prática é comum. O curso de medicina, o primeiro curso superior na área do Estado, terminou o ano passado com dois professores voluntários na disciplina de anatomia. Também há casos de voluntários nos cursos de pedagogia, educação física e outros. “Ele não passa por concurso, não recebe salário e não tem obrigação com nada”, diz a professora Marinalva Oliveira, presidente do Sindicato dos Docentes, que vai acionar o Ministério Público para denunciar a situação.
O clima entre os professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), criada em Santarém, também é de insatisfação. O motivo é a decisão da universidade de criar um curso de graduação “dois em um” para formar professores de educação básica. A ideia é que os formandos do curso sejam capazes de assumir duas disciplinas na escola: matemática e física ou história e geografia. Segundo o pró-reitor de Planejamento da Ufopa, Aldo Gomes Queiroz, a união das graduações responde à urgência da educação básica na região. “Temos 6 mil professores de ensino fundamental e médio sem diploma, e eles dão aula em mais de uma disciplina.” Para o professor do ciclo básico da Ufopa Gilson Costa, o curso, porém, vai formar profissionais que s não dominam nem uma disciplina nem outra. “Sempre trabalhei com a interdisciplinaridade: você tem de ter o pé firme em uma área para dialogar com outras”, afirma Costa, cientista social e engenheiro-agrônomo com pós-graduação em economia. “Mas o que estão fazendo aqui é um Frankenstein.” Costa diz que o curso “dois em um” ganhou um apelido entre os professores: Matafísica. “Mata a matemática e a física.”
Anunciada pelo governo federal como uma das 14 novas universidades, a Ufopa foi criada a partir da fusão de um polo da Universidade Federal do Pará com a Federal Rural da Amazônia. Sem estrutura para os cursos novos, neste ano 1.200 alunos vão assistir às aulas no espaço de eventos de um hotel de Santarém. No interior do Estado, as aulas serão em escolas municipais. Esse mesmo expediente está sendo usado pela Unifesp de Guarulhos, onde alunos de 6 a 11 anos vão dividir um Centro de Educação Unificado (CEU) com universitários.
Procurado, o ministro da Educação, Fernando Haddad, não respondeu aos pedidos de entrevista. Por meio de sua assessoria, disse que os problemas são naturais de um processo que está no início. Alguns dos cursos novos, porém, já formaram turmas sem a estrutura mínima. Na Ufes, o curso de engenharia do petróleo existe há quatro anos e meio e ainda não tem laboratório. Alguns até foram construídos, mas não há equipamento. Neste ano, os primeiros formandos começam a procurar trabalho em empresas como a Petrobras, mas sem a formação necessária. Em Santos, o curso de educação física da Unifesp já formou duas turmas, mas ainda não tem um complexo esportivo próprio. Os alunos usam clubes conveniados para as atividades. “No ano passado, descobrimos que não poderíamos usar as quadras onde treinamos porque o clube vendeu a área”, diz Luana de Oliveira Cândido, aluna do curso. Ela desistiu de um projeto de iniciação científica em natação por falta de piscinas adequadas para medir o tempo e o batimento cardíaco dos nadadores.
Entre os especialistas em educação, há consenso de que a expansão das universidades públicas federais é uma necessidade. Elas são responsáveis hoje por apenas 14% do número de alunos que ingressam no ensino superior. A rede privada responde por 76%. Na média, as instituições públicas continuam a ser as de maior qualidade porque, além de dar aula, os professores fazem pesquisa. Aumentar o acesso à rede pública federal é uma forma, portanto, de atender à necessidade do país de ter um número maior de profissionais qualificados no mercado de trabalho. Mas para atender de fato a essa demanda, é preciso que essa expansão seja feita com planejamento para que a qualidade do ensino superior público seja preservada e os investimentos (caros) deem retorno.
“De nada adianta criar uma universidade por decreto e depois começar a preencher os cargos sem planejamento. Qual é a lógica desses investimentos?”, diz o cientista político Simon Schwartzman, pesquisador especializado em educação e mercado do trabalho do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade. Para Schwartzman, a ampliação feita nos últimos anos, além de não ter sido planejada, reproduz alguns velhos problemas das universidades brasileiras. “O que mais vemos nas federais é a expansão das carreiras tradicionais. Não há ligação entre a ampliação e os estudos sobre demanda profissional.” Segundo Schwartzman, os cursos novos deveriam ter sido planejados de acordo com a necessidade de profissionais das regiões do país.
Por enquanto, o governo federal alardeia os números do aumento do ingresso nas universidades. As consequências da falta de planejamento podem aparecer no futuro. Uma delas está relacionada aos futuros formandos dos novos cursos: alguns com deficiência de formação, outros com especialização em áreas para as quais não há demanda no mercado de trabalho. Outro problema poderá ser a continuidade do financiamento da expansão. O Reuni prevê investimentos apenas até 2012. Depois disso, o orçamento poderá voltar a cair. “Não há mecanismo institucional de financiamento da expansão”, afirma Roberto Leher, especialista em ensino superior da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Se as universidades não conseguirem fazer tudo até o fim do programa, vamos ficar com estudantes novos, mas sem instalações e professores.” Para Leher, considerando quanto as obras estão atrasadas e todos os outros problemas, o país poderá ter para 2013 uma bomba-relógio armada.