Em 1910 Abraham Flexner publicou o seu famoso relatório analisando e tornando público o estado caótico das escolas de medicina então existentes nos Estados Unidos. Em decorrência, um grande número de escolas foi fechada devido ao clamor do público, temeroso da ação eventualmente perversa de profissionais tão mal formados.
Influenciado pela universidade alemã, Flexner propunha a criação de hospitais universitários, com professores em tempo integral e dedicados essencialmente ao ensino e à pesquisa.
Dizia que um professor deveria atender apenas a um pequeno número de pacientes, necessários para realizar as suas atividades de docência e pesquisa médica. Celebrava-se aí o conceito do hospital universitário fechado e o conceito do “teacher-researcher”, em vez do “teacher-practitioner”.
A Universidade de Johns Hopkins foi criada seguindo esses ditames e influenciou a criação de novas escolas nos EUA e, sobretudo, na América Latina.
Estudos posteriores de Kerr White mostravam o problema de se desenvolver o ensino médico em hospitais universitários, de regra, atendendo a uma parcela de pacientes com doenças mais raras e que requeriam o uso de exames complementares por vezes muito sofisticados. Esses estudos foram corroborados na Colômbia, mostrando o problema da adoção do Hospital Universitário como o local principal da formação geral de médicos.
Quando em 1966 criamos a Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, além de adotar um ensino pré-clínico integrando ciências básicas, clínicas e sociais em módulos de sistemas orgânicos, dando desde logo ao aluno uma visão do homem em relação ao seu meio físico, biológico e social, adotamos um hospital comunitário – Unidade Integrada de Saúde de Sobradinho – UISS – para abrigar o ciclo clínico do curso médico.
Aceitando a responsabilidade integral na cobertura dos serviços visando atender às demandas e necessidades da população da cidade satélite de Sobradinho, os alunos iniciavam o seu ciclo clínico estudando a comunidade e sua população e avaliando os problemas que deveriam encontrar em relação à sua saúde. Habitação, saneamento, alimentação (propunha-se hortas nas quadras), educação e condição econômica eram estudadas e discutidas (obteve-se, por exemplo, a ligação de casas provisórias à rede de esgotos que era inoperante).
O curso oferecido era igualmente integrado, comportando módulos de medicina comunitária, medicina integral do adulto, medicina integral da criança, saúde materno-infantil.
O aluno era envolvido, sob supervisão, em todas as atividades da UISS e Unidades de Saúde Periféricas, de atenção domiciliar, ao ambulatório, enfermarias e emergência, sempre apoiados por um corpo docente trabalhando em tempo integral e dedicação exclusiva. Desenvolvia-se o aprendizado em serviço (a teoria emergia da prática), em regime de “clerkship”, ou seja o internato era ao longo do curso clínico. Os alunos não tinham férias longas e sim escalas de serviço e aprendiam e atingiam os objetivos cognitivos, afetivos e psico-motores definidos para cada módulo com ritmos diferentes, de acordo com sua aptidão, conhecimentos prévios e motivação.
Discutiam-se os problemas da comunidade, propondo-se soluções a todo o tempo, sempre com a participação ativa de alunos, professores, técnicos, funcionários e da própria população.
Na formatura, o orador do primeira turma de alunos dizia: “Nessa escola não tivemos obstáculos a transpor. Nosso estudo não foi a prova da memória, mas o aprendizado do entender. Nossos mestres estiveram a nosso lado sem a distância do título e o vazio da cadeira. Não fizemos um curso: vivemos ciência, criamos um método, tornamo-nos médicos”.
Infelizmente os tempos difíceis que macularam nossa história nos impediu de continuar esse projeto tão auspicioso.
No momento em que se pensa em ampliar o ensino médico no país, continua-se pensando em criar novos hospitais universitários (muitos dos que existem não são sequer integrados à rede de serviços de sua região) preservando uma formação fora da realidade e das necessidades comuns de uma população. Cultivamos o diagnosticar difícil, auxiliado por uma série de exames complementares de laboratório e de imagens, protegido por médicos especialistas e por procedimentos sofisticados, por vezes. Não se deve pensar na tecnologia mais moderna e sim na mais apropriada à situação do serviço de saúde.
As pessoas são avaliadas ao longo de sua vida, por tudo e por todos, pais, filhos, companheiros, amigos, chefes, e moldam sua vida para se ajustar a essas avaliações. Ninguém quer perder amor e reconhecimento. E as universidades não avaliam os seus docentes por todas as suas atividades. Importa, sobretudo, a sua atividade de pesquisa, sobretudo para se conformar com avaliação de órgãos como a Capes/MEC, instituição de grandes méritos, mas que certamente introduz um efeito perverso que é avaliar só uma faceta do trabalho docente, esquecendo de sua atividade como professor e no serviço de saúde.
Quando quis instituir cursos de autoinstrução em ciências básicas no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde- Nutes/ UFRJ, ouvia repetidamente frases como “vou lhe dedicar um mês de meu tempo fora do laboratório para desenvolver materiais instrucionais, ou criar questões de avaliação formativa, porque a universidade só reconhece o que pesquiso e publico”.
Se quisermos formar médicos com uma formação básica integral, temos que sair do hospital universitário e caminhar para hospitais comunitários e unidades de atenção básica, sempre aceitando a responsabilidade social de prestar serviços visando atender às demandas e necessidades da população de um território definido e sempre contando com a participação plena (como membro da equipe de saúde) dos alunos.
Carlos Chagas dizia em 1918 que na escola médica devia-se “aprender fazendo e ensinar praticando”. E assim deve ser. Hospital Universitário deverá ser considerado como hospital de referência, integrado a uma rede de serviços e reservado à formação especializada e pós-graduada dos profissionais de saúde.
Luiz Carlos Lobo, consultor da UNA-SUS/Fiocruz, é professor aposentado da UFRJ e foi o fundador do curso médico da UNB, em 1966.
Publicação: Valor Econômico
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