Pela defesa do mérito, democratizar a universidade

São muitos os que criticam as propostas de democratização da universidade por acreditarem que elas feririam o mais caro conceito acadêmico: o mérito. Para esses, a universidade deve ter uma administração meritocrática, não se aplicando, portanto, os conceitos democráticos de gestão. Porém, numa análise um pouco mais precisa do atual funcionamento da universidade, percebemos que o modelo administrativo que se propõe ser orientado pelo mérito acaba por colocá-lo em xeque, devido à existência de vícios decorrentes da sua estrutura de funcionamento fechada à participação mais ampla da comunidade acadêmica.

Acreditar que não haja conflito de interesses dentro da academia é ingenuidade. Trata-se de uma instituição poderosa de produção de prestígio para seus membros, que tem papel estratégico na vida do país e, sim, possui orçamento e movimenta dinheiro e produtos do conhecimento com valor de mercado. E, como não poderia ser diferente, dentro dela se faz política, busca-se a consolidação de grupos de influência, briga-se por linhas de financiamento e disputa-se o poder.

Mas como funcionam o encaminhamento e a solução de conflitos dentro de uma instituição pouco permeável à democracia? Da pior forma possível. O que se traveste como uma orientação meritocrática se transforma, na prática, numa aristocracia: a universidade acaba criando e reproduzindo uma estrutura de poder estratificada a partir de títulos quase nobiliárquicos. Instauram-se feudos de influência (ao arrepio de uma proposta pedagógico-acadêmica mais sólida e transdisciplinar), assim como todo um complexo sistema de suserania e vassalagem. Nada mais nefasto para o ambiente que se propõe a ser o livre espaço de produção de conhecimento e de crítica. Dentro dessa dinâmica, o mérito fica comprometido, se o entendermos como a possibilidade de sucesso pelas suas próprias qualidades, e não por outros condicionantes culturais e sociais, tais como os laços privilegiados com os grupos hegemônicos dentro da universidade.

Como um simples exemplo, mas sintomático, é uma reunião de uma Congregação de Faculdade da USP quando da necessidade de se constituir uma banca de seleção de um novo professor titular, composta por outros 5 professores dessa categoria. Como esse cargo é o mais alto da universidade, ele possui também prerrogativas políticas dentro de sua gestão (leia-se “poder”). A depender do contexto e dos candidatos a pleiteá-los (obrigatoriamente professores com longa carreira dentro da universidade), a votação desses membros da banca se transforma numa batalha de foice no escuro, já que, a depender de qual alinhamento tiver a maioria desses examinadores, um ou outro candidato será o vencedor. A consagração de um professor ao mais alto grau da carreira acadêmica decorre então de aferição de mérito? Como regra geral, não, já que diversos outros fatores acabam preponderando para a escolha de um novo ator dentro da política universitária, fortalecendo o grupo a qual pertence. Torna-se mais um nobre na corte.

E é essa mesma universidade, a principal do país, que novamente presencia fortes mobilizações por parcelas significativas de estudantes, professores e funcionários que buscam democratizar sua estrutura na qual menos de 2% da sua comunidade participa do processo de escolha do seu reitor (dentre esses 2%, a “nata meritória”, a maioria esmagadora é de professores titulares). No caso do atual, prof. dr. João Grandino Rodas, o caso é mais grave: ele nem sequer foi o mais votado dentre essa ínfima parcela. Ele foi o segundo colocado, mas alçado ao posto pelo uso da prerrogativa de escolha por parte do então governador José Serra (PSDB) a partir de uma lista tríplice. Não é por acaso que ele tem sido motivo de tantos e recorrentes conflitos com a comunidade acadêmica, comprometendo a imagem da universidade no país e no exterior. E há ainda aqueles que acreditam que a universidade é blindada à política.

Fato semelhante ocorreu no final do ano passado na PUC-SP, quando o cardeal-arcebispo de São Paulo e seu grão-chanceler, D. Odilo Scherer, lançando mão da sua prerrogativa estatutária, escolheu como reitora a terceira e última colocada nas eleições, profa. dra. Anna Cintra. Vale ressaltar que o processo eleitoral da PUC-SP é tripartite (todos os três setores votam e tem peso igual), e foi criado pelo então cardeal D. Paulo Evaristo Arns que, enquanto o país ainda vivia na ditadura, no início dos anos 1980, acreditava que a universidade devia dar o exemplo e ser democrática. Até ano passado, sempre o mais votado tornou-se o reitor. Instado por estudantes a dizer a razão de sua atitude, passando por cima de 30 anos de tradição democrática, D. Odilo Scherer se limitou a responder que não cabia ao grão-chanceler justificar sua escolha. A consequência disso foi a instauração de uma crise institucional grave, com forte reação da comunidade acadêmica que se sentiu absolutamente ultrajada pelo gesto do cardeal, com desdobramentos na justiça que permanecem.

Nesses dois casos acima, vale ressaltar que tanto o governador do Estado quanto o cardeal-arcebispo possuem muito menos conhecimento sobre as necessidades da comunidade universitária e, portanto, legitimidade para interferir nas questões internas do que muitos estudantes, professores e funcionários das mesmas, além de sofrerem pesado lobby de determinados e influentes grupos internos e externos à universidade.

Enfim, a conclusão é óbvia. Há política dentro da universidade. Há conflitos de interesses. Há disputas de projetos e visões distintas de sua finalidade. E por isso não existe nenhuma outra forma de mediá-los que não passe pela democratização de suas estruturas de gestão e desburocratização das formas de participação política. Somente trazendo às claras as diferenças é possível fazer o bom debate e estabelecer critérios públicos e construídos democraticamente para a solução dos conflitos. Caso contrário, como acontece atualmente, sua mediação se trava às escuras, em conchavos, em grupos de amigos, em perseguições políticas que acabam justamente por comprometer aquilo que deve ser o farol de qualquer instituição dessa natureza: o mérito.

A democratização da universidade resolverá todas as suas crises? Absolutamente não. A democratização da universidade não é a panacéia, mas é seu pressuposto de funcionamento. Enquanto ela não for democrática, os espaços de produção de conhecimento, de realização de pesquisas, de formulação de políticas de extensão estarão reféns da politicagem rasteira, concretizada sob a forma do compadrio e das trocas de favores, revelando uma tensa promiscuidade entre os interesses particulares e os gerais. Alguns professores poderão ascender na carreira, outros não. Determinados projetos de pesquisa terão verba, outros não. Estruturas curriculares poderão ser mais adequadas a seu objeto de investigação e ensino, outras não. E por isso fica a questão: quem tem medo de democratizar a universidade?

RODOLFO VIANNA, 28, é formado em jornalismo pelo USP, mestre e doutorando em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem pela PUC-SP.

RENAN QUINALHA, 27, é formado e mestre em Direito pela USP, doutorando em Relações Internacionais pela mesma instituição. Ambos foram representantes discentes junto ao Conselho Universitário da USP

 

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