Mestranda da UFG, Vercilene Dias relata o seu caminho enquanto estudante e pesquisadora da comunidade Kalunga
Vercilene Dias*
Na noite chuvosa de 4 de abril de 1990, enquanto o Rio Congonha, riacho localizado a cerca de 80 metros de minha casa, transbordava até o “terreiro”, vinha ao mundo/universo maravilhoso, que amo, a Kalunga mais “caradura”, pelas mãos da parteira Dona Supriana. A partir desse dia começava uma trajetória que até a própria protagonista jamais imaginou chegar, apenas sonhava, sonhava com um mundo que desejava encontrar, conhecer e transformar, realizar o sonho de “ser alguém” para ajudar a família.
Há 13 anos saí de minha comunidade no noroeste de Goiás para tentar a sorte nesta capital. Dentre as várias coisas que almejava, me formar em Direito era a maior delas. Desde criança sonhava em “ser alguém” para ajudar as pessoas de minha comunidade, dito sonho nascera diante das ameaças constantes do “Coronel Z. B.”, um pecuarista da região que reivindicava violentamente as terras ocupadas por meu pai. Mal sabia eu que havia uma distância quase que intransponível entre mim e o meu sonho. Mesmo que inocente, minha aspiração infantil guardava toda minha sede de justiça, justiça essa que foi negada a mim e ao meu povo por séculos. Dessa negatória resultou para nós a exclusão e a perversidade de um sistema feito para manter os privilégios daqueles que historicamente exploraram a mão de obra escrava de meus antepassados e que ainda tentam reproduzir, mesmo que sutilmente, essa dominação e subjugação no tempo presente.
Em 2011 ingressei no curso de Direito da UFG. Lembro-me do dia do resultado com a mesma emoção e entusiasmo. Estava eu na cidade de Cavalcante, esperando encontrar algum lugar que vendesse o jornal para que eu pudesse ver se havia sido aprovada. Nenhum lugar da cidade vendia o dito jornal, e se encontrasse o jornal para comprar não faria muita diferença, pois aquele dia 4 de fevereiro de 2011 era sábado e o resultado só seria publicado no jornal no domingo, dia 5. Então, eu e minha irmã, que estava grávida de oito meses, nos sentamos no meio-fio da praça principal para esperar a lan-house abrir para que eu pudesse verificar no site da UFG se havia sido aprovada. O tempo da espera parecia interminável, até que às 9 horas a lan-house abriu. Afoitas, eu e minha irmã corremos para lá. Abri a lista de classificação, mas de tão nervosa não acreditava que meu nome estava lá, pedia então que minha irmã, que apenas conhece as letras, soletrasse meu nome na lista de classificação e conferisse com minha identidade. Eu a perguntava: tem V, ela respondia, tem; tem E; tem R; tem C; tem I; tem L; tem E; tem N; E… É seu nome mesmo maninha! Vibramos e choramos incontidamente por alguns minutos.
Naquele momento, minha história passava diante de mim como um filme, lembrava-me da primeira escola que estudei na minha comunidade. Tal escola foi construída por nós e o professor foi eleito pela comunidade por meio de um único critério: dentre todos, foi escolhido aquele que era “o mais esclarecido”. O eleito era meu tio Isaías, que havia estudado até a 4ª série do primário (corresponde hoje ao 5º ano do ensino fundamental, primeira fase). Estudei na escolinha da comunidade até a 4ª série, então, com 11 anos, pedi a meu pai para ir morar com a família de um fazendeiro na cidade de Arraias, no Tocantins. Com a permissão de meu pai, 11 anos de idade e muitos sonhos, me mudei para Arraias. Lembro que cheguei na cidade à noite, mas como nunca havia visto luz elétrica, fiquei deslumbrada e pensei que na cidade era dia e que lá jamais escurecia. Ao chegar na casa da família que me abrigaria e à qual ofereceria meus serviços a fim de pagar minha estadia, deparei-me pela primeira vez com uma televisão. Fiquei atônita e não conseguia olhar para nada além da TV. Me indagava como um homem poderia estar preso naquela caixinha. O homem era o ator Marcos Palmeiras que interpretava um dos personagens protagonistas da novela Porto dos Milagres. Na cena à minha frente, ele resgatava uma mulher do mar e pedia socorro a Iemanjá.
Fui para Arraias para cursar a 5ª série, mas em razão da precariedade e disfunções de minha formação, me voltaram para a 4ª série. Permaneci em Arraias até meados da 7ª série, retornei para a comunidade de origem, depois para Cavalcante e fui residir com uma tia, lá permaneci por cerca de um ano até me mudar para Goiânia. Em Goiânia, vim residir com uma tia para prosseguir meus estudos. Morei com ela cerca de um ano, nesse período convivi com o assédio e o alcoolismo de seu companheiro. Como no quarto em que eu dormia não havia porta, a fim de evitar ser surpreendida por ele à noite, colocava obstáculos para que ele tropeçasse e eu pudesse acordar e me defender. Consegui um emprego e fui morar com uma prima. Nesse meio tempo, continuei meus estudos até conseguir chegar à universidade.
Na universidade, passei várias dificuldades. Por vezes, deixei de ir às aulas por não ter dinheiro para pagar a passagem etc. Nos primeiros anos de curso, sentia-me deslocada e isolada, mas hoje cá estou, graduada em direito em 2016 pela UFG, advogada, e mestranda em Direito Agrário, aprovada em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG. Hoje, no Mestrado, tornei-me protagonista e não apenas objeto de pesquisa. Tenho como projeto de pesquisa o Estudo dos Conflitos Internos Gerados pelas Disparidades da Regularização Fundiária na Comunidade Kalunga. Advogo para a Associação Quilombo Kalunga (AQK), a qual representa os interesses do povo Quilombola Kalunga. Sinto-me realizada, talvez não totalmente, tenho muito a conquistar e a fazer, mas estou cumprindo o propósito que tanto almejei para com minha comunidade.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito Agrário da UFG