O Dia da Consciência Negra é comemorado em 20 de novembro, fazendo referência à morte de Zumbi, líder do Quilombo de Palmares, o maior quilombo do período colonial brasileiro. Embora a escolha da data carregue algumas divergências, ela foi instituída pela Lei Federal 12.519, em 2011, sendo adotada também como feriado em alguns estados e municípios.
Nesse mês de novembro, abordamos a trajetória das políticas públicas que visam democratizar o acesso às universidades e a importância delas para escrever novas trajetórias de vida. Além disso, apresentamos algumas produções de pesquisadores brasileiros que estiveram em solo uberlandense durante a décima edição do Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (Copene), realizado no mês passado na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
A lei de cotas
Buscando democratizar o acesso ao ensino superior, há seis anos, a Lei 12.711/2012, conhecida como “lei de cotas”, foi sancionada, reservando metade das vagas nas universidades para estudantes oriundos de escolas públicas. Essas vagas são subdivididas entre candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, sendo eles de baixa renda ou não, e também para alunos das classes socioeconômicas mais baixas, independente da autodeclaração de cor ou raça.
Essa política pôde ser avaliada no Relatório do perfil socioeconômico e cultural dos estudantes de graduação das universidades brasileiras, desenvolvido pelo Fórum Nacional de Pró-Reitores de Assuntos Estudantis (Fonaprace) e pelo Centro de Estudos, Pesquisas e Projetos Econômico-sociais (Cepes/UFU) em 2014. A pesquisa se repetiu neste ano e o lançamento do relatório está previsto para fevereiro de 2019.
Traçando um comparativo, no ano de 2010, pretos e pardos somavam 39,6% dos estudantes universitários. Em 2014, um ano após a efetivação da política de cotas, essa população representava 46,3% dos graduandos. Nesse mesmo período, o total de estudantes com renda familiar de até dois salários mínimos passou de 34,8% para 49,86% do total.
Percentual de estudantes negros nas universidades (arte: Elaíny Carmona)
A política de cotas auxilia na democratização do acesso, enquanto outras políticas públicas foram criadas visando à permanência desses estudantes na universidade, como é o caso do Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes). O programa tem como objetivo “minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na permanência e conclusão da educação superior” e, segundo o Decreto 7.234/2011, responsável pela sua regulamentação, atua em dez eixos: moradia estudantil, alimentação, transporte, atenção à saúde, inclusão digital, cultura, esporte, creche, apoio pedagógico e acesso, participação e aprendizagem de estudantes com deficiência, transtornos de desenvolvimento e superdotação.
Apesar dessas políticas, o censo da Educação Superior de 2016, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) do Ministério da Educação, revela que os negros ainda são minoria no ensino superior. A pesquisa pediu que os professores da rede pública e privada de ensino fizessem, por meio de um questionário, uma autodeclaração de raça. Os dados apontam, por exemplo, que 0,4% dos docentes na pós-graduação são mulheres negras. Em termos numéricos, isso representa 219 mulheres negras no topo da carreira acadêmica no Brasil. Em contraponto, são 13.198 homens brancos ocupando a mesma posição, representando 24% do total de mais de 53 mil docentes nos cursos de mestrado, doutorado e especialização.
Sobre esses dados e a importância de espaços como o Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (Copene), a professora Luciana Lima, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que participou do evento na UFU, comenta: “historicamente temos uma representatividade muito baixa. Mulheres negras na pós-graduação representam menos de 1% no Brasil. Então, ter um congresso voltado para esse grupo nos fortalece”.
A mestranda em Comunicação Ana Luiza Monteiro Alves, da Universidade Federal Fluminense, também participou do Copene e acredita que o contexto das academias brasileiras é violento e de negação. “O tempo todo a gente é negado dentro da universidade. Têm momentos que a gente quase fica louco pensando: ‘mas será que isso é ciência, será que tem valor?’ E quando você chega aqui, você percebe que existem pessoas com a mesma vivência e você consegue perceber que sim, você reafirma, é como se você reafirmasse esse laço, reafirma sua sanidade mental”, declara.
Escrevendo novas trajetórias
Integrando a parcela de estudantes que ingressaram na universidade por meio do sistema de cotas, Ana Lara Cardoso Coelho pausou sua graduação em Relações Internacionais na UFU para desenvolver pesquisa na Universidade do Porto, em Portugal.
A estudante ingressou no ensino superior em 2015 e, já no primeiro período, começou a se engajar em atividades extracurriculares. Segundo ela, esse interesse se deu por conta da proximidade com veteranos do curso. “Através deles eu tive contato muito cedo com o movimento estudantil, com atividades de extensão, como grupos de estudos sobre assuntos que não são muito aprofundados em sala de aula, pelo fato de que, infelizmente, a ementa da maioria dos cursos de RI tratam de pautas mais eurocêntricas. Então, logo no primeiro semestre, fui membro do Diretório Acadêmico. Além disso, participei do antigo grupo de estudos LGBTQ+ Xica Manicongo. Também tive contato com o coletivo Bonecas de Pixe, que abriu um leque de reflexões na temática étnico-racial. Assim, iniciei um ciclo de envolvimento em pautas extracurriculares na universidade, que acredito ter sido fundamental pra perspectiva acadêmica que tenho hoje”, relata.
Coelho, além de cotista, residiu na Moradia Estudantil durante um ano e meio, contando com as bolsas de assistência estudantil para o restante da graduação, e reitera a importância desse tipo de política: “a assistência estudantil foi essencial para a minha permanência na UFU. A minha cidade fica a quase 400km de distância [de Uberlândia] e a minha família jamais teria condições de me manter aqui, uma vez que a nossa renda per capita não beira um salário mínimo.”
A estudante realiza intercâmbio por meio do edital Abdias Nascimento, ofertado pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab/UFU), e atualmente, na Universidade do Porto, desenvolve um projeto que combina teoria decolonial e antropologia, para retratar a realidade do povo Saaraui e como esse território é visto no sistema internacional.“O leque de opções dentro desse tema é imenso e precisa ser filtrado à medida que me familiarizar mais com a pauta. O plano é fazermos uma visita aos campos de refugiados em Tindouf na Argélia, guiado pelo meu orientador, professor doutor Maciel Santos“, conta.
Além disso, a estudante frequenta aulas do Mestrado em Estudos Africanos da Faculdade de Letras do Porto, onde estão desenvolvendo o 28º volume da Revista Africana Studia, cujo tema será a realidade da República Árabe Saaraui Democrática.
Completando um mês em terras portuguesas, Coelho fala sobre suas primeiras impressões e expectativas. “Apesar de ter chegado há pouco tempo, pude perceber a conexão de uma universidade europeia com o resto do mundo. O fato do reitor da Universidade de Tifariti comparecer a uma conferência realizada pelo Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto ilustra muito bem isso e a agenda do resto desse ano me leva a crer que terei grandes oportunidades de ver a teoria como prática. Ter contato de fato com o meu objeto enriquece a pesquisa. Além de que a experiência de morar em outro país, viver outras culturas, conhecer pessoas de todo os lugares ajuda no seu crescimento, é um convite ao amadurecimento de caráter, te faz ver o mundo com outra perspectiva.”
Por fim, a estudante afirma a importância de ser uma pesquisadora negra na atualidade, tendo a oportunidade de desenvolver seu trabalho em outro país. “Por muitos anos, o negro foi objeto de estudo e nunca ocupou espaços protagonistas na academia. Acredito que isso é um ato político revolucionário e o nosso papel é trazer uma perspectiva ‘não-branca’ à produção acadêmica. É mostrar a nossa capacidade crítica adquirida apesar das opressões e racismos diários. É representar para outros, como nós, que não começaram ou que estão no início da jornada acadêmica, que é, sim, possível chegar até ali.”
Estudos afro-brasileiros na UFU
O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (Neab/UFU) foi criado em 2006 e atua nos três pilares universitários: ensino, pesquisa e extensão, com foco nos estudos afro-brasileiros e ações afirmativas em favor das populações afrodescendentes. Coordenado pelo professor Guimes Rodrigues Filho, o núcleo hoje conta com uma equipe de quase 30 pessoas, entres docentes, estudantes e colaboradores.
Com uma ampla produção acadêmica, o Neab desenvolve também projetos relacionados à formação docente e capacitação de professores da rede pública, por meio do projeto “A cor da cultura”, e também oferece espaços formativos sobre “Gênero, raça e etnia” e “Educação para as Relações Étnico Raciais”.
De objeto a sujeito
O X Congresso Nacional de Pesquisadores Negros (Copene) aconteceu entre os dias 12 e 17 de outubro. O evento mobilizou mais de 2 mil pessoas de todas as regiões do Brasil e de países como Colômbia, Argentina, Angola, Moçambique e Portugal. A programação oficial se dividiu entre apresentações de pesquisas, mesas-redondas e vivências culturais, como a tradicional festa da Congada em Uberlândia.
O congresso foi fruto de uma parceria entre a UFU, a Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e o Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (Conneabs). O objetivo foi compor um espaço de divulgação, circulação e promoção da produção científica dos pesquisadores e pesquisadoras negros e negras e estudiosos das temáticas vinculadas às reflexões sobre intelectualidade negra nos diferentes campos do conhecimento científico.
Durante a programação do X Copene, pesquisadores tiveram espaços voltados para a apresentação dos seus trabalhos nas mais de 50 sessões temáticas, discutindo assuntos como políticas públicas de acesso e permanência, relações de gênero e educação e arquitetura.
Trajetória dos cotistas na universidades
A pesquisa de Luciana Lima busca traçar um perfil dos estudantes que ingressaram nas universidades por meio da reserva de vagas. O trabalho integra um projeto nacional da Universidade Federal de Minas Gerais sobre ações afirmativas. São analisadas questões como a inserção no mercado de trabalho e nos programas de pós-graduação. A trajetória durante o curso da graduação e como esses alunos se engajaram em projetos, pesquisas, estágios e atividades extraclasse também foram alvo da pesquisa.
Para Lima, o retorno da sua pesquisa para a sociedade se relaciona à motivação. “Essa pesquisa como um todo apresenta não só a parte quantitativa quanto qualitativa, apresenta histórias e narrativas que dão uma injeção de ânimo na gente. Então são vidas transformadas em todos os sentidos. A passagem pela universidade causa uma ruptura. São indivíduos que tradicionalmente tinham pouca entrada na universidade. A partir do momento que essas pessoas começam a entrar mais, existe uma ruptura, um estranhamento, mas por outro lado tem uma transformação na vida das pessoas.”
Negra e pesquisadora das ciências exatas, a professora diz que estar inserida nesse contexto significa resistência o tempo inteiro. “O que ajuda a gente a enfrentar as dificuldades cotidianas é saber que a gente inspira outras meninas. A gente inspira outros estudantes negros. Quando eu estou em sala de aula, eu sempre penso: o meu estar aqui diz muito para essas pessoas, então é resistência. Temos que superar as dificuldades pensando que sempre há outro olhando pra gente.”
Racismo tipo exportação
Ana Luiza Monteiro Alves teve interesse em se engajar na carreira acadêmica após participar da primeira edição do Copene, em 2008, quando ainda era uma menina. Em 2018, veio ao congresso apresentar o seu trabalho, que objetiva lançar um olhar sobre as relações raciais em Cuba a partir das telenovelas brasileiras, observando a recepção do material no país caribenho.
“O que eu estou querendo dizer é que essas telenovelas brasileiras não têm impacto só aqui no Brasil, elas não só reforçam esse olhar racista para a população negra aqui no Brasil, mas elas vão além”, explica a pesquisadora.
A pesquisa de Alves indica que telenovelas ainda colocam negros em papéis de subalternidade. “A minha intenção é dar visibilidade a esse pensamento racista brasileiro que é um modelo de exportação. O nome da minha pesquisa é ‘Racismo tipo exportação’, porque o modelo racial brasileiro é um modelo que deu certo, no sentido de conseguir subalternizar uma das maiores populações negras do mundo. Eu acho que as telenovelas brasileiras contribuíram para isso em vários lugares do planeta.”
Para Alves, ser uma pesquisadora negra no Brasil “é ter um olhar sobre a sociedade, ter um olhar que questiona os problemas sociais de diversos âmbitos e que oferece não só um olhar, mas uma alternativa de outra sociedade. O intelectual negro tem esse papel de dar visibilidade à nossa história, às nossas demandas, aos nossos problemas e ao que precisa ser.”
Cultura como resistência
Recém-graduado em História, Diego Souza Canuto veio da Universidade Federal da Paraíba à UFU apresentar o fruto do seu trabalho de conclusão de curso. Canuto se ateve a quatro diferentes manifestações culturais – Maracatu, Coco de roda, Cabindas ou Cambindas e Congo -, investigando como a cultura popular foi capaz de opor-se às ações racistas vigentes no contexto do pós-abolição, quando, nas primeiras décadas do século XX, acreditava-se que o ideal de modernizar e civilizar a população brasileira se daria seguindo os padrões europeus.
O pesquisador acredita que seu trabalho contribui para colocar em prática uma educação antirracista e que cumpra a Lei 10.639, que estabelece o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em todos os graus de ensino. “Trazer para a sala de aula a possibilidade de discutir o quanto a essa população negra foi negado o seu papel político, econômico, sua contribuição social em todos os períodos históricos do Brasil. Enquanto o Brasil existe enquanto país, espaço e território, a contribuição dessa população foi negada e ocultada. Eu, trazendo essa pesquisa para a sala de aula, posso mostrar o quanto essa população, ao contrário do que a história oficial alega, foi importante para a construção da nossa história. Eu trago um exemplo de uma identidade muito próxima do alunado paraibano. Com isso estou fazendo com que eles se reconheçam, reconheçam sua cultura histórica,” explica Canuto.