A decisão pela doação de órgãos e tecidos, quando autorizada pela família de um paciente que acaba de morrer, desencadeia uma corrida contra o tempo. Realizar exames, confirmar diagnóstico, acionar os órgãos reguladores, cumprir os trâmites burocráticos e finalmente fazer a cirurgia de retirada de órgãos, chamada captação. Tudo em menos de 24 horas. Foi o que aconteceu pela primeira vez no Hospital Universitário de Brasília (HUB).
O processo inédito começou na noite de 16 de janeiro, quando a equipe de profissionais do HUB, após a realização de vários testes e exames, confirmou a morte encefálica de um paciente internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O diagnóstico é a única causa de óbito que pode resultar em doação. Em seguida, o hospital comunicou a Organização de Procura de Órgãos e Tecidos (OPO), do Sistema Nacional de Transplantes do Ministério da Saúde. “Nessa hora, o mais importante é o acolhimento da família. Em segundo lugar, vem a questão da doação dos órgãos”, afirma o nefrologista do HUB, Giuseppe Cesare Gatto, que acompanhou a captação.
Na manhã de quinta-feira (17), a família autorizou a doação. A enfermeira do Centro Cirúrgico, Lucianne Pereira de Andrade, foi uma das pessoas que passou a oferecer suporte aos familiares. Ela integra a Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT) do HUB. “A comissão precisa dar apoio à família nesse momento difícil e garantir a entrega do corpo no horário que precisam. Me mantive perto da família desde o início e até a hora em que eles saíram do hospital”, recorda a enfermeira.
Enquanto Lucianne acompanhava o cumprimento das formalidades do processo, que exigem uma série de documentos, outra enfermeira do Centro Cirúrgico, Marilda Picoli, cuidava da organização dos materiais e das atividades agendadas para aquele dia. “Por ter sido a primeira vez, gerou uma ansiedade, mas ocorreu tudo da melhor maneira possível e representou um aprendizado enorme”, avalia Marilda. Elas e outros profissionais do HUB passaram por capacitação no ano passado para atuar na CIHDOTT.
Com tudo pronto, várias equipes se mobilizaram para a captação, que começou à tarde e terminou na noite de quinta-feira (17). O fígado e um dos rins estavam comprometidos, mas o resultado foi positivo, com a captação de um rim e duas córneas, que no dia seguinte beneficiaram três pessoas que aguardavam por esses órgãos. A escolha de quem recebe o órgão é determinada pela Central de Transplantes do ministério, que cruza as informações do doador com as de quem está na lista, avaliando por exemplo tempo de espera, idade e padrão de compatibilidade sanguínea e imunológica. “É muito significativo ver a esperança de vida melhor para outras pessoas”, avalia a enfermeira Lucianne.
Para o chefe da Unidade de Transplante do HUB, Rômulo Maroccolo Filho, a experiência pode ajudar a divulgar a cultura da doação de órgãos. “Quanto mais difundida, menos resistência existe na captação, não só entre a sociedade civil, mas entre os profissionais de saúde”, ressalta.
Segundo ele, embora inédito no HUB, a captação é uma atividade comum em outros hospitais, já que a característica de atendimento determina essa condição. Na maioria dos casos, o diagnóstico de morte encefálica acontece em pacientes que tiveram AVC ou traumas na cabeça. Esse não é o perfil do HUB, que recebe muitos pacientes idosos, oncológicos e com a presença de infecções, o que inviabiliza o aproveitamento de órgãos.
Em 2014, a instituição passou por experiência semelhante, com a diferença de que naquela época o paciente doador foi encaminhado de outro hospital para apenas passar pela cirurgia de captação no HUB. O urologista Pedro Rincón estava presente naquele ano e foi ele quem realizou a captação do rim agora. “A grande importância desse evento é conscientizar toda a equipe para a importância da captação e da manutenção do corpo em boas condições com o objetivo de deixar os órgãos viáveis para a doação”, comenta.
CIHDOTT – Criada em 2014 e composta por sete membros, a Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante visa procurar doadores e facilitar os processos de captação de órgãos no HUB. Os representantes visitam diariamente a Unidade de Pronto-Socorro, a UTI e o Centro Cirúrgico para acompanhar os casos dos pacientes críticos e identificar potenciais doadores.
Após essa primeira experiência, o chefe da Divisão Médica, Rodolfo Borges de Lira, que assumirá a CIHDOTT, espera fortalecer esse processo de logística e abordagem familiar entre os profissionais de saúde, para que conheçam o processo e possam contribuir. “O trabalho agora será mais voltado para a sensibilização tanto dos profissionais quanto dos familiares que, num momento difícil, podem beneficiar outro ser humano”, avalia.
A primeira captação de órgãos ocorreu em janeiro deste ano, mas o processo final, que é o implante, funciona há bastante tempo no HUB. O serviço foi inaugurado em 2006, com o primeiro transplante de rim. De lá para cá, já são 295 cirurgias, 24 em 2018, a maioria de doador falecido. Em 2008, o hospital passou a realizar também o transplante de córnea. Ao todo, já foram feitos 675 procedimentos, sendo 40 em 2018.