No imaginário comum, as mulheres moradoras no interior do País nos séculos passados eram recatadas, impotentes, progenitoras e donas de casa. Mas uma pesquisa inédita da UFLA mostra que a trajetória das mulheres do sul de Minas Gerais tem muitos mitos, e revela que elas foram, sim, agentes da própria história.
Estudioso sobre a História Ambiental da região, o professor do Departamento de Educação (DED) Josué Humberto Barbosa conta que as mulheres sul mineiras desenvolveram autonomia, chefiavam os negócios, escreviam em jornais e até ajuizaram ações de divórcio na Justiça Comum, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o que é pouco conhecido na história do Brasil e curioso para a época.
Na pesquisa, realizada com a participação das estudantes do curso de Pedagogia da UFLA Milena Rabelo e Larissa Espuldaro, o historiador desmistifica o estereótipo da mulher submissa, clássica no patriarcalismo do Nordeste, geralmente reproduzido para todo o território nacional. Segundo dados da época, no sul de Minas as mulheres participavam da vida pública. “O complicado na nossa sociedade é a manutenção de valores equivocados que não possuem correspondência histórica. Simplesmente ela continua sendo valorizada porque mantém os privilégios em uma sociedade governada por homens”, esclarece o historiador na entrevista a seguir.
– Qual a importância do resgate histórico para compor a identidade do povo no sul de Minas?
Desde o doutorado, minha ideia foi desenvolver uma série de pesquisas sobre a história ambiental do lugar onde a UFLA atua, ou seja, o sul de Minas. Os estudos apontaram que existe uma coleção de memórias da região, contada pelos primeiros habitantes, desbravadores da época das sesmarias, geralmente valorizando as famílias mais importantes. Entretanto faltavam análises e produção de conhecimento que orientassem a formação educacional, principalmente de estudos que pudessem ser desenvolvidos na formação de professores e nas escolas da região. Ao contrário do que muitos pensam, a importância política e econômica do sul de Minas é bem anterior à importância econômica propiciada pelo café há mais de dois séculos. Ela decorreu da riqueza acumulada na produção e abastecimento de alimentos para o Brasil, principalmente após a chegada da corte portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808, devido à fertilidade das terras e ao regime pluviométrico muito regular. Consequentemente, os proprietários de terra e comerciantes do sul de Minas conseguiram se eleger deputados e senadores, ou seja, se estabelecerem como elite política nacional por meio da produção de gêneros de primeira necessidade.Diferentemente do que acontecia no Nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo, onde predominava a monocultura; no sul de Minas, d desde o final do século XVIII, dominava a policultura da plantação do fumo, arroz, milho, algodão, linho de cânhamo; diversas frutas, entre elas a uva, o marmelo e a produção da famosa marmelada; a produção leiteira, fabricação de queijos e manteiga; criação de porcos, bois, carneiros; uma próspera produção de tecidos em teares manuais, popularizados em quase todas as famílias; e até mesmo fábrica de chapéus.
– De que forma essa diversificação da economia impactou na vida da população do sul de Minas?
A mistificação da economia do final do século XVIII aponta que temos dificuldade para compreender as relações de gênero em nossa cultura. Naquela época, os viajantes estrangeiros já compreendiam a mulher sul mineira de forma diferenciada. Enquanto as mulheres das áreas mais tradicionais eram sempre muito policiadas, vigiadas, reprimidas e mantidas fora da vida pública; a mulher sul mineira mantinha mais contato com os homens, gesticulava, vestia roupas coloridas e se mostrava muito mais que aquelas das outras províncias e até do resto de Minas Gerais. Em 50 inventários de famílias de Lavras emergem mulheres letradas, resistentes à opressão e focadas na emancipação feminina por meio da educação. Inclusive, em um dos primeiros jornais publicados por mulheres no Brasil – chamado “O Sexo Feminino” – produzido na região, elas exigem que não querem ser tratadas como mobílias, buscam ser reconhecidas como pessoas, desejam participar da vida política e econômica, e não querem ser o “belo sexo”, como dizia Gilberto Freire.
– Então, quem foram as mulheres no sul de Minas do final do século XVIII e XIX?
Exemplifico com uma mulher chamada Dona Florinda. Ela era de Três Pontas, que na época pertencia à comarca de Lavras, e subverteu a ordem patriarcal no início do século XIX ao conseguir divorciar-se do seu marido. Talvez inédito para o Brasil da época, em vez de pedir divórcio na igreja, como muitas outras fizeram, ela o fez na Justiça Comum. Ela caracteriza a luta pela identidade de mulher ao mesmo tempo em que reafirma a identidade da região como uma área agrícola, onde as famílias estavam envolvidas com a produção de alimentos e roupas e onde as mulheres participavam ativamente das atividades sociais e econômicas. Dona Florinda alega que o marido estava dilapidando o patrimônio da família porque contraía muitos empréstimos, que ele não cuidava da terra e não valorizava a tradição econômica e comercial da região. No sul de Minas, mulheres assumiam, chefiavam a casa e os negócios da família, quebrando a ideia tradicional de que não participavam da vida pública no período colonial e imperial.
– O que faz essa mulher do sul de Minas ser diferenciada?
É diferente da família patriarcal do Gilberto Freire, caracterizada pelo pai – aquele senhor que inclusive remete à ideia do homem medieval da Europa; a sua mulher como uma rainha, dona de casa, honesta, recatada, procriadora, que tinha no seu entorno uma série de mulheres concubinas dos seus maridos trabalhando como empregadas na casa. A mulher no sul de Minas, a partir do que podemos observar em uma lista nominativa de habitantes de Lavras da primeira metade do século XIX, constituía uma família nuclear, com marido, filhos e poucos escravos. Ao contrário, a família extensa de um senhor de engenho, patriarcal, em geral convivia com dezenas e ou centenas de escravos. A propriedade em que a mulher do sul de Minas vivia era bem diferente da formação do latifúndio açucareiro e cafeeiro clássicos, pois predominava a pequena propriedade, a policultura, o envolvimento de toda a família na produção, beneficiamento e comercialização de excedentes e na fabricação de doces e queijos, por exemplo. Não havia a figura de fachada que tentava reproduzir a imagem da família que devia ser vista pela sociedade.
– Isso acontecia apenas com as mulheres ricas da região?
Não. Inclusive não pudemos verificar para o Sul de Minas a polaridade socioeconômica também clássica na história do Brasil, principalmente na monocultura do café e do açúcar, onde poucas famílias são muito ricas e muitas são pobres. Aqui, entre 1795 e 1822, a concentração de renda ocorreu entre as classes intermediárias da sociedade, na classe média baixa, classe média e classe alta média. Ou seja, todos estão se equilibrando; as pessoas se encontram, são próximas, por não haver distância econômica entre as famílias, permitindo, inclusive às mulheres, constituírem uma cultura comum e mais coesa. Essa é toda a base para o desenvolvimento econômico posterior do Sul de Minas.
– O que mais é possível observar sobre o comportamento das mulheres nessa época?
É a história da força da mulher em busca dos seus objetivos, rompendo com a tradição patriarcal de família. Há mais de cem pedidos de divórcio apenas no bispado de Mariana na época. Está claro na pesquisa bibliográfica que a mulher vai e faz. O complicado na nossa sociedade é a manutenção de valores equivocados, que não têm correspondência histórica. Por conta da força da visão masculina, desse patriarcado, do mundo machista, acaba-se reproduzindo uma história sem a devida correspondência com as distintas realidades aqui vividas e suas inúmeras possibilidades de relação entre gêneros. Existe a imagem consolidada de uma sociedade urbana mais democrática na Região do Ouro. Lá, os negros compravam alforria, tinham acesso a bens e ao convívio social muito maior. Consequentemente, as mulheres desses lugares são mais abertas e aparecem mais na vida pública. Até então, não se tentava compreender o que acontecia no restante de Minas Gerais, e principalmente no sul de Minas. Por ser considerada área agrícola, consequentemente reproduziram erroneamente a lógica do nordeste e do Rio de Janeiro. A gente parte de uma análise por correspondência, sem saber o que está acontecendo aqui. Os homens adoram a ideia da mulher submissa, da casa, patriarcal, que cuida dos filhos, para a reprodução, recatada, honesta. Mas esses estereótipos se sobrepuseram à pesquisa histórica. Daí a importância desse estudo para desmistificar a visão colocada como hegemônica que continua sendo valorizada porque mantém os privilégios dos homens.
– Em outra região do Brasil, as mulheres tinham comportamentos similares?
As cidades mineradores, como Ouro Preto e Mariana, sempre foram vistas como áreas onde as mulheres apareciam mais por contarem com espaços de sociabilidades mais amplos, por meio de atividades festivas, em que se valorizava a música e arte em geral. O que não se sabia é que no sul de Minas isso também é verdade.
– Qual o legado o gênero feminino dessa época deixou para os dias de hoje?
Está na forma como tomam decisões na esfera pública e se colocam à frente de processos decisórios na família. Tudo isso interferiu na presença feminina na vida pública nos dias de hoje. No entanto, elas ainda precisam continuar caminhando, pois no Brasil sempre se criou e ainda se criam muitas barreiras a essa participação, principalmente na administração pública. É importante que passem a ocupar cargos representativos, nas câmaras municipais, estaduais e federais, e mesmo diretivos, nas prefeituras e nos governos estadual e federal.