O que é ser baiano? E baiano na medida do Recôncavo?
Para responder a esse processo de formação de identidade, o jornalista, professor e pesquisador José Péricles Diniz, estudou o jornalismo regional, especificamente a localidade de Cachoeira, por seu pioneirismo e intensa produção jornalística, sobretudo a partir do Século XIX e até a primeira metade do Século XX, atrás de respostas.
Desse estudo, nasceu a tese de seu doutoramento em Cultura e Sociedade, na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o livro físico e digital Ser baiano na medida do recôncavo, publicado e reproduzido pela Editora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (EDUFRB). O livro físico custa R$ 30,00 (trinta reais) e está disponível na sede da EDUFRB, em espaço localizado na Biblioteca Central, Campus Cruz das Almas.
Diniz também é autor do livro O Jornal na Escola, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB). O livro é parte integrante e importante de sua dissertação de mestrado em Educação, pela UFBA.
Para este Ser baiano na medida do recôncavo, contendo 252 páginas, Diniz iniciou o levantamento de informações pelo ano de 1823 – quando surgiu o primeiro jornal impresso em uma localidade do interior da Bahia, O Independente Constitucional, da cidade de Cachoeira – até pelo menos o encerramento do ciclo da cana-de-açúcar, entre o final do Século XIX e a primeira metade do século passado. Estudou as páginas de 28 periódicos de diferentes matrizes ideológicas.
O objetivo foi levantar, na trajetória destes periódicos, as principais influências à construção simbólica que permeia aquilo que está escrito, inspirando e orientando a formação da identidade baiana e, principalmente, do Recôncavo.
Diniz reconhece que “para analisar a produção discursiva da imprensa não se deve, portanto, deixar de considerar a sua condição institucional de poder, o seu lugar de fala”.
Com o recorte espacial dos periódicos cachoeiranos, no período de 1832 até 1946, Diniz buscou identificar e levantar na trajetória dos veículos da imprensa periódica regional as influências mais significativas na formação da identidade sociocultural do Recôncavo da Bahia, buscando estabelecer como foi articulado historicamente o discurso predominante, em suas dimensões política e ideológica, bem como demonstrar como essa imprensa efetivamente participa desse processo de produção de representações e de sentidos.
“Nos periódicos impressos é possível encontrar os temas e problemas mais caros e urgentes para dado período histórico”, destaca Diniz, que exerceu as funções de revisor (1985), repórter (1985 a 1991), chefe da Sucursal Recôncavo (1991 a 2003), chefe da Sucursal Metropolitana (2003 a 2004), editor e repórter especial (2004 a 2005) do jornal A Tarde.
Ao selecionar e classificar para análise uma mostra significativa daquilo que foi veiculado na imprensa em relação à criação, legitimação e reforço de representações sociais, atribuição de valores ou cristalização de estereótipos, é possível compreender como foram configurados e articulados ideologicamente os discursos destinados à formação da identidade regional.
Diniz aponta que a própria imprensa é de importância sociocultural inquestionável para o desenvolvimento daquilo que o organismo midiático nacional convencionou chamar de baianidade, bem como seus arquétipos tão difundidos pelo turismo e através de produtos como a música, a literatura, o humor e até mesmo a chamada crítica social veiculada através dos artigos e editoriais desta mesma imprensa.
Para ele, é preciso propor e defender a tese de que o discurso jornalístico é, efetivamente, um instrumento tão eficaz e influente quanto às tradições, as práticas culturais e formais de ensino na formação de valores e no estabelecimento de noções como cidadania, urbanidade, progresso ou nacionalismo.
Traços culturais
Estudando o período histórico destacado, o autor, diz que “aqui, as palavras-chave para decifrar as motivações que alimentam tão efusivas mágoas contra o próprio local de nascimento estão enumeradas entre aquilo que a Bahia não pouparia ou respeitaria, principalmente nome, posição e reputação”.
Afinal, quem os tem são aqueles detentores de algo sobre o qual possa cair a inveja e a intriga dos tais guerrilheiros, aqueles covardes que maldizem, especulam e dilaceram justamente por não terem família (no sentido de berço, de procedência, herança), não terem poder (cargo público, ascensão, hierarquia) e não terem o respeito (celebridade, glória, honra) dos seus pares.
Por fim, cabe a consideração de que tal herança – de que as coisas na Bahia são diferentes, em geral piores, embora também melhores que a dos outros, quando conveniente – permanece arraigada, legitimada e reproduzida insistentemente pela estrutura midiática até hoje.
Tal qual as queixas de lideranças empresariais, políticas, intelectuais e artísticas contra uma certa ingratidão da Bahia para com os seus expoentes. Além desta tendência em ser ingrata para com os seus filhos ilustres, a ótica de grande parte dos redatores cachoeiranos do Século XIX também acusa a Bahia de padecer de determinados problemas relacionados às vocações e aptidões naturais do seu povo.
O livro demonstra claramente como foram construídas, “através das páginas dos mais importantes periódicos cachoeiranos de um período bastante extenso que vai do ano de 1832 até 1946, arquétipos e estereótipos como do povo festivo, porém preguiçoso e carente de um líder, fruto de uma mestiçagem que inclui ainda a morena sedutora e o mulato pachola’.
Todos enredados em um rol de referências, estigmas e preconceitos que mais tarde seriam fartamente utilizados tanto pelas narrativas literárias e musicais – como os romances de Jorge Amado e os sucessos radiofônicos de Dorival Caymmi – quanto pelos personagens de humor, do cinema e da televisão, com a intenção de vender produtos, apelos turísticos ou mesmo manipulações de cunho político-populistas os mais diversos.
Como estas conclusões evidenciam, todos eles estão lá, o mulato pachola, a morena sedutora e o preto preguiçoso, estereotipados nas páginas da imprensa regional cachoeirana.
Para a identidade baiana, esses periódicos ajudaram a “demarcar e afirmar a medida do baiano enquanto povo indolente e mestiço, musical, hospitaleiro e festivo, embora ingrato e governado por ladrões” e relegando, ainda, a explorar um eventual potencial turístico ou em promover ou valorizar a identidade cultural ou o patrimônio musical, culinário, artístico nas páginas dos jornais daqueles anos.
“De fato, produzidas pelos redatores de jornais cachoeiranos desde as primeiras décadas do Século XIX, são recorrentes e eloquentes ideias de Bahia e de ser baiano. Ou seja, noções construídas e legitimadas de como deve ser e se comportar os indivíduos do Recôncavo, como sementes daquilo que mais tarde seria definido como baianidade”, define o autor.
Periódicos pesquisados
O autor selecionou os jornais de maior destaque, a partir de parâmetros como a periodicidade, formato e tiragem até a sua longevidade, o tempo em que esteve em circulação, abrangência, influência política ou algum detalhe curioso ou peculiar em sua trajetória.
O levantamento de tais características, complementado e enriquecido com testemunhos e relatos de época, certamente forneceu pistas seguras para balizar a efetiva abrangência e poder político de cada publicação. Desse recorte foram pesquisados O Recopilador Cachoeirense (1832), O Constitucional Cachoeirano (1837), O Paraguassu (1847), O Povo Cachoeirano (1849), O Argos Cachoeirano (1850), A Voz da Mocidade (1850), O Almotacé (1850), O Vinte e Cinco de Junho (1853), Jornal da Cachoeira (1855), O Progresso (1860), O Americano (1867), A Formiga (1869), A Grinalda (1869), A Ordem (1870), Sentinella da Liberdade (1870), Echo Popular (1874), A Verdade (1876), O Guarany (1877), O Futuro (1878), O Santelmo (1880), Diário da Cachoeira (1880), Echo do Povo (1881), A Imprensa (1884), O Brazil (1886), O Tempo (1887), O Republicano (1890), A Cachoeira (1896) e Pequeno Jornal (1912).