O projeto tem por objetivo a educação popular em direitos humanos sobre violência obstétrica, através da promoção de ações de esclarecimento, junto às mulheres grávidas do município, sobre os direitos das gestantes e a humanização do parto.
Contrariando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o Ministério da Saúde, por meio de despacho publicado no dia 3 de maio de 2019, aboliu o uso da expressão “violência obstétrica” no âmbito de suas normativas. De acordo com o despacho, o posicionamento oficial do Ministério da Saúde é que o termo violência obstétrica “tem conotação inadequada, não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestação-parto-puerpério”.
A polêmica é grande, e, nesse sentido, o Ministério Público Federal acaba de fazer uma recomendação ao Ministério da Saúde para que o mesmo esclareça, por meio de nota, que o termo “violência obstétrica” é uma expressão já consagrada em documentos científicos, legais e empregada comumente pela sociedade civil e que a expressão pode ser usada por profissionais de saúde, independentemente de outros termos de preferência do Governo Federal.
Na recomendação, a procuradora da República Ana Carolina Previtalli, responsável por um inquérito civil público com quase 2.000 páginas e 40 anexos com relatos de denúncia de violência obstétrica em maternidades e hospitais de todo o país, requer também que o Ministério da Saúde se abstenha de realizar ações voltadas a abolir o uso da expressão violência obstétrica e que, em vez disso, tome medidas para coibir tais práticas agressivas e de maus tratos às gestantes.
Mas, afinal, o que é violência obstétrica? Como ela se caracteriza? Como podemos combatê-la? Desde 2017, o projeto de extensão “Nascer em Santarém” busca combater esse tipo de violência de gênero, levando informação às gestantes do município de Santarém, no Oeste do Pará. o projeto tem por objetivo a educação popular em direitos humanos sobre violência obstétrica, através da promoção de ações de esclarecimento, junto às mulheres grávidas do município, sobre os direitos das gestantes e a humanização do parto.
O projeto é vinculado à Clínica de Direitos Humanos, que integra o Programa de Ciências Jurídicas do Instituto de Ciências da Sociedade (ICS) da Ufopa. “O nosso tema central é a violência obstétrica. É uma proposta de trabalhar com educação popular em direitos humanos, levando informação para as mulheres grávidas sobre o que é violência obstétrica, quais são os seus direitos enquanto gestantes, além de discutir formas de se prevenir e combater esse tipo de violência”, afirma a coordenadora do projeto, Emanuele Nascimento de Oliveira Sacramento.
Docente do curso de Direito da Ufopa, Emanuele Sacramento explica que a violência obstétrica é qualquer forma de maus tratos à gestante, praticada por profissionais da saúde durante seu pré-natal, no parto e no pós-parto ou nas situações de abortamento. “É uma violência de gênero que pode se caracterizar de forma verbal, física, psicológica ou mesmo sexual, e se expressa de diversas maneiras, às vezes explícitas, às vezes veladas”, afirma.
São exemplos comuns de violência obstétrica: xingamentos ou falas depreciativas feitos contra a gestante; falta de informação sobre procedimentos realizados; procedimentos que são realizados sem uma justificativa médica; a proibição do acompanhante durante o parto; forçar a gestante a fazer uma cesariana contra a sua vontade; a demora no atendimento; entre outras ações que ferem os direitos básicos das gestantes, como o direito ao acompanhante; o direito ao atendimento digno e de qualidade; o direito ao parto normal informado e à cesariana quando necessário.
Segundo Emanuele Sacramento, até o momento não há no Brasil uma lei unificada sobre o tema da violência obstétrica: “Temos diversas portarias do Ministério da Saúde, que devem ser seguidas pelos profissionais da área, além de algumas leis esparsas”, explica. A principal é a Lei n. 11.108 de 2005, também conhecida como Lei do Acompanhante, que dá direito à mulher de ter consigo, no momento do parto, um acompanhante de sua escolha, independentemente de ser homem ou mulher. Para a docente, mesmo com a criação da Lei do Acompanhante, esse direito é recorrentemente violado: “Isso traz um sentimento de solidão muito forte para essas mulheres que tem seu direito negado”.
Além de ouvir os relatos das gestantes para a elaboração do chamado “plano de parto”, a equipe do projeto também orienta sobre como denunciar esse tipo de violência, caso ela ocorra com a gestante. Em Santarém, a prática de violência obstétrica pode ser denunciada no Ministério Público Estadual, situado na Avenida Mendonça Furtado, bairro Liberdade, em frente ao Hotel Barrudada. Se o atendimento foi realizado pelo SUS, a denúncia deve ser feita na Promotoria de Saúde; mas se o atendimento ocorreu na rede privada (plano de saúde ou particular), a denúncia deve ser feita na Promotoria do Consumidor.
A denunciante deve levar seus documentos pessoais (RG e CPF), além da carteira de gestante e a cópia do prontuário médico de atendimento, que ela tem o direito de receber. “Se a mulher não puder ir, um acompanhante ou pessoa de sua família pode comparecer com esses documentos para registrar a denúncia”, explica Sacramento. “Além disso, a mulher que sofreu essa violência pode registrar um boletim de ocorrência na Delegacia da Mulher, que temos aqui na cidade, ou ainda procurar a Defensoria Pública do Estado, para demandar judicialmente os seus direitos”.
Roda de Conversa – O projeto Nascer em Santarém atua em duas linhas de frente: uma interna, voltada para a capacitação da própria equipe, formada principalmente por alunos do Direito e áreas afins; e outra externa, tendo as mulheres grávidas como público alvo. Nesse sentido, são realizados atendimentos coletivos e individualizados, visando ao esclarecimento das gestantes sobre seus direitos e à elaboração do plano de parto. “Mas também fazemos eventos abertos ao público, como seminários e palestras, conforme somos convidados ou quando percebemos a necessidade”, afirma Sacramento.
A cada mês, a equipe do projeto realiza uma roda de conversa com gestantes que fazem o pré-natal nas unidades básicas de saúde do município de Santarém. “É uma forma de atendimento coletivo, que trabalha com a metodologia de educação, esclarecimento, visando levar informação às gestantes”. Nas primeiras rodas de conversa, a professora conduzia a atividade e dava o tom da conversa, que inclui a escuta das gestantes: “Hoje os acadêmicos já fazem a condução da atividade”.
Segundo a coordenação do projeto, já foram realizadas rodas de conversa nas unidades básicas de saúde que atendem aos bairros do Mapiri, Liberdade, São Cristóvão, Conquista e Maicá. “Atendemos a necessidade das unidades básicas de saúde dentro do planejamento do pré-natal”, explica. As unidades de saúde podem entrar em contato com o projeto para solicitar o agendamento da atividade com as gestantes.
Plano de Parto – Elaborado por profissionais da saúde, o plano de parto é uma diretiva de vontade, um documento baseado na legislação vigente e nas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), na qual a gestante manifesta seus desejos para o momento do parto. Por meio de um atendimento individualizado, a equipe do projeto Nascer em Santarém busca auxiliar futuras mães a elaborarem seus planos de parto, a partir do relato de experiência de vida de cada gestante. O primeiro atendimento foi realizado em dezembro de 2018. “É uma coisa inédita na cidade. Até agora já atendemos 15 gestantes”, explica a coordenadora do projeto.
Segundo Sacramento, o ideal é que o plano de parto seja elaborado durante o período do pré-natal, com o apoio da equipe que faz esse atendimento à gestante. Após receber as informações necessárias, a gestante define suas necessidades e desejos para o momento do parto, compreendendo que cada parto é único. “Ela pode incluir nesse documento que ela deseja receber um tratamento respeitoso; ter o acompanhante com ela durante o procedimento do parto; que deseja amamentar seu bebê na primeira hora de vida, porque isso vai trazer benefícios para o recém-nascido”.
Um documento essencial, que ajuda na elaboração do plano de parto, é a caderneta da gestante. Desenvolvida pelo Ministério da Saúde, a caderneta é entregue a todas as gestantes que fazem o pré-natal pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na caderneta há, inclusive, um espaço destinado ao preenchimento do plano, além de informações referentes a situações de violência obstétrica, que devem ser evitadas no momento do parto. “Os próprios gestores e profissionais de saúde muitas vezes não sabem o que é o plano de parto, apesar de haver um espaço destinado ao plano na caderneta de gestante”.
Os atendimentos para a elaboração do plano de parto são realizados na sala 311, situada no terceiro andar da Unidade Amazônia, onde funciona a Clínica de Direitos Humanos da Ufopa. Os agendamentos podem ser feitos diretamente na sala do projeto, de segunda a quinta, das 14 às 17 horas; ou pelo e-mail do projeto: nasceremsantarem@gmail.com. “Agendamos no máximo duas gestantes por semana”, explica. Segundo Emanuele Sacramento, o ideal é que sejam feitos dois encontros com as gestantes: no primeiro para tirar dúvidas, dar esclarecimento e ouvir o relato da futura mãe; e o segundo para, de fato, redigir o plano de parto, a partir de suas necessidades da gestante. Já o atendimento das grávidas com mais de 35 semanas é feito em apenas um único encontro.
Para a docente, essa experiência tem sido bem interessante. “Tem muitas mulheres que sofreram maus tratos, xingamentos, solidão durante o parto. Mulheres que perderam o bebê em função da violência obstétrica”, explica. “A partir da fala delas, esclarecemos o que é violência obstétrica e quais são seus direitos durante o parto”.
Capacitação da equipe – Atualmente o projeto Nascer em Santarém conta com a participação de alunos voluntários do curso de Direito e de uma bolsista de extensão, Dayani Oliveira, acadêmica do curso de Antropologia. O projeto conta ainda com a participação voluntária da psicóloga Vanusa Marques e do bacharel em Direito Thiago Sacramento, que é servidor do Ministério Público Estadual, além da parceria do grupo Roda Família Gestante Moira. Formado por mães vítimas de violência obstétrica, o grupo promove encontros mensais, no Parque da Cidade, para debater o tema e encaminha gestantes para fazer o plano de parto na Ufopa.
Além do atendimento das gestantes, outro objetivo do projeto é a capacitação constante de sua equipe, através de encontros semanais onde são debatidos os temas abordados pelo projeto. “Nesses encontros sempre procuramos trabalhar o protagonismo dos discentes”, esclarece a coordenadora do projeto. “Temos um grupo de discentes que está há um tempo no projeto e já desenvolvem várias ações. Nesse sentido, um dos objetivos do projeto é a capacitação constante dos nossos discentes”.
Nos encontros são realizados palestras, cursos e oficinas, como a de escuta ativa, realizada no último dia 6 de maio. “A escuta ativa é uma ferramenta que tem por objetivo permitir que a gente consiga estabelecer um contato entre pessoas que têm históricos de vida completamente diferentes. Ela permite que a gente exerça a nossa habilidade de empatia e de conseguir se colocar no lugar da outra pessoa”, explica Tiago Sacramento que ministrou a atividade.
Saber ouvir o outro, suas necessidades e história de vida, é essencial para a escuta da gestante, visando à construção do plano de parto. “Aqui no projeto, a maioria dos nossos acadêmicos são do curso de Direito e ainda não passaram pela experiência do parto. Essa é uma forma da pessoa se sentir pessoalizada, de entender que esse atendimento é feito de pessoa para pessoa, de permitir que cada futura mãe possa expressar sua individualidade sem ser julgada, sem medo de ser mal compreendida”.
Discentes do curso de Direito da Ufopa, Andreza Lopes Leão, de 20 anos, e Laura Geovana Meireles da Silva, de 21 anos, participam do projeto como voluntárias desde 2017, quando a iniciativa estava apenas começando. “A primeira vez que tive contato com a violência obstétrica foi quando entrei na Ufopa, com a divulgação das propostas dos grupos de pesquisa da Clínica de Direitos Humanos. Numa das palestras, ouvi falar sobre violência obstétrica, e o que me chamou a atenção foi o fato dela estar relacionada com o tema da violência contra a mulher, pois é um tipo de violação dos direitos da mulher, em especial da gestante”, lembra Laura Geovana da Silva.
A discente revela ainda que redescobriu o tema através das rodas de conversa, das palestras e da capacitação interna que é feita com os participantes do projeto. “Tem sido uma experiência muito grande. Aqui no projeto eu me redescobri como acadêmica e também como pessoa. Foi aqui que tive a primeira experiência do contato da universidade com a sociedade”, explica.
“O projeto Nascer em Santarém veio para complementar a minha vivência dentro da universidade”, afirma Andreza Lopes Leão, que participou do primeiro atendimento realizado pelo projeto. “Esse atendimento piloto foi um desafio pra gente, porque é difícil você escutar e lidar com as diferenças do outro e, ainda assim, recolher informações dessa experiência de modo não tão invasivo, respeitando os direitos e a história daquela pessoa”.
Para a discente, a Ufopa tem como objetivo oportunizar não só os conhecimentos da graduação, como também promover a participação dos alunos em projetos de extensão, como o Nascer em Santarém, além de realizar pesquisas. “Nesse sentido, o projeto abriu portas imensas na nossa vida para a produção acadêmica e também para o crescimento pessoal e como discente. E para entender o que é, de fato, a educação em direitos humanos”.
Mais informações sobre o projeto Nascer em Santarém e agendamento de atendimento (Roda de Conversa ou Plano de Parto) diretamente na sala 311, situada no 3º andar da Unidade Amazônia (Av. Mendonça Furtado, bairro de Fátima), Campus Santarém, ou pelo e-mail nasceremsantarem@gmail.com.
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