Primeiro reitor da UFBA a comandar a entidade, João Carlos Salles Pires da Silva afirma que vai lutar para manter a universidade pública como lugar de pesquisa e de excelência
As universidades federais estão abertas ao diálogo com o governo sobre a proposta do Programa Future-se e prometem promover encontros e debates para analisar o documento em todos os seus detalhes. Mas não aceitam o “pegar-ou-largar” imposto pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub.
João Carlos Salles Pires da Silva, reitor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que acaba de ser eleito para a presidência da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), reitera, em entrevista ao Jornal da Ciência, a posição expressa na Carta de Vitória, um documento que os reitores firmaram depois de uma reunião, no fim de julho, na capital capixaba.
Fundada em maio de 1989, a Andifes reúne 63 universidades, dois centros federais de educação tecnológica (Cefet) e dois institutos federais de educação ciência e tecnologia (Ifet) que reúnem mais de um milhão de alunos de graduação e pós-graduação. Eleito em chapa única, com 38 dos 42 votos, Salles sucede Reinaldo Centoducatte, reitor da federal do Espírito Santo.
Licenciado em filosofia e mestre em ciências sociais pela UFBA, e doutor pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), João Carlos Salles Pires da Silva é professor do Departamento de Filosofia e já exerceu o cargo de diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA. Tem mais de 25 livros publicados, entre obras próprias e organização de artigos de terceiros; também é membro titular fundador da Academia de Ciências da Bahia e da Academia de Letras da Bahia. Leia a seguir a entrevista na íntegra:
Jornal da Ciência – Como o senhor vê a situação das universidades públicas no Brasil hoje?
João Carlos Salles Pires da Silva – O sistema de universidades públicas federais teve significativa expansão, cujos resultados, porém, não foram de todo consolidados. Primeiro, houve descontinuidade abrupta nos recursos de investimento, de sorte que muitas obras permanecem inacabadas. Segundo, tem havido progressiva defasagem orçamentária no sistema, o que desestimula diretamente seu crescimento. Com isso, estamos mais longe de cumprir a meta de expansão com qualidade, tal como estabelecida no Plano Nacional de Educação, sobretudo no que se refere a atingirmos uma proporção de 40% de vagas oferecidas pelo segmento público.
JC – O senhor vê nesse ponto uma diferença com o segmento privado, que apresentou grande expansão?
Salles – Sim. No setor privado, que conta com volume decisivo de recursos públicos, está o grande número de vagas de ensino superior. Ao mencionarmos, porém, o segmento público, falamos de vagas em instituições de ensino superior que não oferecem apenas ensino, em sentido amplo, mas sim um ensino vinculado intimamente à pesquisa e extensão. Assim, com a ressalva das exceções bem conhecidas, as vagas no segmento público (hoje responsável, por exemplo, por 95% da pesquisa realizada em nosso país) são de cursos em que é valorizada a existência de infraestrutura para pesquisa e para ensino, em que importam a titulação e o regime de trabalho dos docentes, a existência de condições para formação de cientistas, para verdadeira pesquisa, para autêntica extensão. O ensino superior não deve expandir-se sem essa garantia de qualidade. E a meta do PNE não deve, portanto, ser cumprida mediante uma flexibilização indevida dos critérios, facilitando a abertura de cursos sem suficiente padrão de qualidade.
JC – Quais as suas prioridades à frente da Andifes?
Salles – Neste momento, uma questão se impõe. É necessário lutar pela reversão do bloqueio no orçamento das universidades. Isso é imediato, não sendo claro por quanto tempo podemos dar continuidade ao funcionamento regular de nossos campi. Além disso, como todos sabem, já se fazem sentir graves prejuízos e desgastes no cotidiano das universidades, assim como são conhecidos os prejuízos para a pesquisa, com a suspensão de editais e o corte de bolsas.
Ao tempo que lutamos por recursos imediatos, cumpre lutar pela definição do orçamento de 2020, no que nossa comissão de orçamento e nossa comissão de modelos, em sintonia com o pleno da Andifes, já procuram o debate com o MEC para a definição do que nos cabe na PLOA, mas é claro que, em seguida, não deixaremos de dialogar com os parlamentares, até a aprovação da próxima LOA.
Há agora um debate que não podemos ignorar, qual seja, o Programa Future-se. Nesse caso, chamo a atenção para nossa Carta de Vitória, na qual adiantamos algumas ponderações sobre o programa, assim como conclamamos nossa comunidade e a sociedade a um intenso debate. A carta se encontra na página da ANDIFES e nas de diversas universidades.
Enfim, como uma questão fundamental e permanente, cabe guardar e defender a unidade da ANDIFES. Em um sistema com 63 universidades, há situações bastante diversas, a começar do tempo de existência e a dimensão de nossas instituições, mas guardamos nossa unidade com a reafirmação de princípios definidores de nossa associação, como a defesa da autonomia universitária, e o permanente e cuidadoso debate de tudo quanto pode afetar a vida acadêmica e nosso país.
JC – Quais os desafios da universidade a longo prazo? Como pretende encaminhá-los em sua gestão?
Salles – Importante a menção ao longo prazo. Afinal, as universidades se definem na longa duração, elas não se medem apenas por resultados e retornos imediatos, que todavia nunca deixa de também procurar. Assim, é fundamental, a cada tempo, que se evite causar um dano estrutural a instituições que são infensas à ignorância, ao obscurantismo, e que realizam modos diversos de vida democrática, a começar pela definição do que é uma verdade científica — algo que só se afirma por processos de demonstração sofisticados e próprios, nos quais a palavra e o argumento têm precedência sobre qualquer outra forma de poder. Também, sendo um patrimônio de nossa sociedade, o sistema de universidades federais deve evidenciar sua importância estratégica para o desenvolvimento científico e social. Manter-se assim a universidade pública como lugar de pesquisa e de excelência, e ademais garantir que haja comensurabilidade no ensino público praticado em todo país, combatendo desigualdades regionais e não as ampliando, não dividindo o país, são desafios da universidade brasileira — desafios atuais e de longo prazo.
JC – Como é seu relacionamento com o atual governo, especialmente o atual Ministério da Educação?
Salles – Gestores públicos têm, entre seus deveres, o da urbanidade, sobretudo na procura do bem comum. A cortesia preside, pois, o diálogo que mantemos em nossa condição como reitores, tanto em nossas comunidades como com autoridades governamentais. No caso da Andifes, fiz parte da diretoria anterior. Sempre que solicitamos, fomos recebidos pelo sr. ministro com a devida cordialidade — cordialidade que deve ademais favorecer a própria expressão de divergências.
JC – Especificamente sobre o programa Future-se, a Carta de Vitória não rejeita a proposta, mas afirma que a comunidade necessita mais tempo para analisá-la.
Salles – O MEC definiu o tempo e os termos da definição de sua proposta, com abertura de consulta pública, no modelo que julgou pertinente. Certamente, muitos têm julgado insuficiente esse tempo, bem como a forma adotada. Insistimos, porém, que esse é o tempo do MEC para apresentação de um projeto de lei ao Congresso. Por sua feita, nossa comunidade já iniciou o debate, analisando cada item da proposta e, sobretudo, seu aspecto mais orgânico, sistêmico, vendo, portanto, as implicações estruturais de uma eventual adesão ao programa, mesmo sem este ter ainda um formato definitivo. Muitos não deixarão de comunicar suas posições através do mecanismo da consulta vigente. Da parte da Andifes, vamos construir seminários e vamos envolver toda comunidade, sabendo que, ao fim e ao cabo, cada instituição decidirá em seus conselhos superiores, com um exame que não dispensará inteligência e método. Nesse sentido, o debate ultrapassa bastante o tempo da consulta, e certamente terá no parlamento e na sociedade palcos mais ampliados.
JC – O senhor acha que o sistema de financiamento do ensino superior público necessita revisão? Qual seria sua proposta diante deste (ou qualquer outro) cenário de déficit orçamentário da União?
Salles – No atual cenário de déficit, o país precisa certamente refletir sobre suas prioridades. E a educação, o investimento em ciência e a formação continuada de recursos humanos têm sido sempre a melhor aposta em cenários de crise. Neste momento, todo o serviço público enfrenta a limitação posta pela Emenda Constitucional 95, que devemos procurar superar, pois corremos o risco de inviabilizar nossas instituições — em particular, as universidades, que já padecem uma significativa defasagem orçamentária. Além disso, pela legislação atual, temos um grande desestímulo à captação de recursos. Vale enfatizar que nossas instituições, todas elas, captam um conjunto de recursos que são registrados como rendas próprias. Não obstante ser essa capacidade de captação expansível, somos limitados por uma previsão orçamentária, de sorte que o “excedente” captado não fica disponível para a universidade.
Aliás, a elaboração do Programa Future-se não deixa de ser um reconhecimento da defasagem orçamentária que ora padecem as universidades, assim como o programa lista um conjunto de boas práticas, reconhecendo a excelência de nossas instituições, potencial e, sobretudo efetiva, inclusive sua capacidade de captação de recursos. Entretanto, ao fornecer uma saída apenas para as instituições que aderirem ao modelo proposto, a solução apresentada pode tornar-se um problema ainda mais grave, dividindo indevidamente o sistema de ensino superior público em duas realidades, em dois regramentos. Vale aqui observar que essa divisão indesejável não seria o resultado, por exemplo, de uma implementação mais decidida do novo marco legal para a ciência, tecnologia e inovação, já aprovado nacionalmente em 2016 e carente de implementação mais efetiva no âmbito interno das universidades. Com essa regulamentação, as universidades podem, respeitando sua cultura e legislação específicas, beneficiarem-se todas elas de medidas que facilitam atividades de inovação, sem que, por isso, precisem se dividir.
JC – Haveria alguma vantagem em fazer a gestão da universidade via Organizações Sociais (OS), instrumento utilizado em alguns sistemas de saúde em alguns estados?
Salles – Em certo momento da apresentação pública do Future-se, o sr. ministro disse que, com a adesão ao programa, os reitores teriam tempo até para dar aula. Com isso, talvez estivesse apontando para uma das consequências, talvez a mais grave, do programa, se pensarmos no interesse da preservação da autonomia de gestão financeira e da autonomia administrativa — que, a nosso ver, jamais podem estar dissociadas da autonomia didático-científica. A gestão administrativa das universidades sairia no fundamental das reitorias, das atuais administrações centrais. Aqui, além de eventualmente atingir-se um dispositivo constitucional, temos uma compreensão diversa do que seja a gestão de uma universidade.
Na vida universitária, há um laço interno entre atividades fins e atividades meio. A atividade de administração não pode ser contratada com independência da gestão acadêmica, pois decisões administrativas têm impacto direto no exercício de ensino, pesquisa e extensão, e vice-versa. Aliás, no escopo do programa, essa possível interferência fica bastante clara. Muitas das decisões estratégicas à vida universitária, pelo que está no texto da minuta de projeto de lei e deve ser esclarecido pelo debate, deixariam, ao que parece, a alçada da administração central da universidade e não estariam mais determinadas pelo exercício democrático de nossos conselhos. Outras questões decorrentes de um tal contrato de gestão importam para os regimes de trabalho e contratação de pessoal, bem como, possivelmente, para a definição mesma dos cursos a serem financiados e mantidos.
Muito, portanto, a esclarecer, muito a debater. E esse chamamento ao diálogo e ao esclarecimento é o ponto em que mais temos insistido. Esse é também um chamamento à crítica, que é uma das formas típicas de construção e desconstrução de propostas no ambiente acadêmico. E quem está acostumado com o ambiente acadêmico sabe muito bem que um passo inicial e frequente dado por aqueles que trabalham para fazer avançar o conhecimento é a apresentação de objeções, a reconstrução de razões, procurando extrair os melhores argumentos possíveis, em uma ou outra direção. Desse processo, que é um processo coletivo, pode resultar inclusive a formulação de uma ou mais propostas alternativas. Elas não costumam vir ao início, mas sim ao termo de uma jornada de pensamento.
E todo cuidado se justifica. Afinal, a gestão de uma universidade só é bem sucedida se vem ao encontro de interesses diversos que sabe preservar. A universidade não vive a unilateralidade de um retorno a ser posto, por exemplo, por um mercado, cuja presença não pode desconhecer, mas à qual jamais se subordina. Tampouco vive um tempo único, pois a universidade é sempre o lugar de confrontação de saberes diversos e interesses distintos, como o são o interesse da pesquisa básica e o da pesquisa aplicada, o das ciências e o das artes, assim como nela convivem, geralmente muito bem, o tempo da memória e o da invenção.