Autonomia universitária fragilizada, ausência de referência explícita ao financiamento público do sistema federal de ensino superior, nenhuma alusão aos projetos de extensão ou sobre as políticas de assistência estudantil, falta de clareza nas propostas que propõem o relacionamento entre fundos privados e universidades federais, centralização da gestão a partir do MEC, inexistência de referências sobre as fundações de apoio.
Essas são algumas das críticas que foram apresentadas nesta terça-feira, 17, por dirigentes das maiores universidades federais brasileiras, entre elas a UFMG, além da UFRGS, UFRJ, UNB e outros reitores e reitoras. Participaram também integrantes da comissão externa criada pelo presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM/RJ) para acompanhar o desenvolvimento das ações do MEC – e lideranças do sistema federal de ensino superior, entre eles o presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies). O grupo participou de uma audiência pública no Senado Federal para debater a minuta do projeto Future-se do governo federal.
Participaram da audiência, presidida pelo senador Dario Berger (MDB-SC) parlamentares vinculados à educação, como os senadores Antônio Anastasia (PSDB/MG), professor da Universidade Federal de Minas Gerais, Venesiano Vital do Rêgo (PSB-PR) e Flávio Arns (Rede Sustentabilidade/PR) e a deputada federal Margarida Salomão (PT/MG), ex-reitora da Universidade Federal de Juiz de Fora. A proposta foi subsidiar os parlamentares com informações sobre a realidade das universidades e sua visão do Future-se, considerando que o projeto do governo deverá ser encaminhado ao Congresso Nacional.
A reitora Sandra Goulart Almeida comentou alguns pontos críticos discutidos pelo Conselho Universitário da UFMG, como a importância de se garantir a autonomia universitária de acordo com os preceitos da Constituição, o que a proposta, como está formulada, coloca em risco. “Fizemos uma discussão técnica, com a participação da Procuradoria da República na Universidade, e avaliamos que a proposta de uma OS para fazer a gestão compromete a autonomia da instituição e está na contramão de ações desta natureza em qualquer lugar do mundo. Hoje, procura-se cada vez mais descentralizar as ações e dar mais autonomia às instituições para que possam definir sua missão”.
Além disso, a dirigente destacou que as análises realizadas na UFMG ainda apontaram que a minuta do projeto Future-se indica como novidades muitas ações e iniciativas que as instituições já realizam. “Por exemplo, na UFMG já trabalhamos muito fortemente na perspectiva da inovação. Somos a instituição de ensino superior brasileira com o maior número de depósitos de patentes e temos uma intensa agenda de transferência de tecnologia para o setor produtivo”. Na UFMG, o Conselho Universitário “não recomendou a proposta do projeto”.
A Reitora comentou ainda que o cenário de escassez de recursos é real e as universidades têm consciência dele. Mas as universidades públicas não são a fonte da crise, mas sim a solução. “Precisamos de um orçamento sólido e condições de planejamento para uma gestão eficiente”, afirmou a reitora. Sandra Goulart ressaltou também a importância da aprovação da PEC 24/2019, que retira do teto dos gastos públicos os recursos próprios das universidades federais. “Hoje, se captarmos mais do que o orçamento, limitado pela EC 55, o valor compõe o superavit primário. Não é justo, pois este valor captado por meio da transferência de conhecimento deveria necessiriamente retornar à instituição para investimento em ações de pesquisa, ensino e extensão”.
Projeto
Os dirigentes das universidades presentes à audiência defenderam que o projeto precisa ser intensamente debatido e incorporar as contribuições da comunidade universitária brasileira.
O Future-se é uma proposta do Ministério da Educação segundo o qual o programa permitiria às universidades públicas a captação de recursos privados por meio de contratos com organizações sociais (OSs) sem a necessidade de chamada pública. “Há uma grande relativização, se não a agressão frontal, que ele representa à autonomia universitária, embora se apresente como algo que vai melhorar ou facilitar nossa autonomia”, criticou o reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Rui Oppermann, que informou a rejeição do conselho universitário da instituição à proposta.
Segundo o portal do MEC na internet, o Future-se busca o fortalecimento da autonomia de gestão, financeira e administrativa das universidades e institutos federais (IES). Essas ações, ainda segundo o portal, seriam desenvolvidas por meio de parcerias com as organizações sociais. O argumento é de que o programa pode promover a sustentabilidade financeira, estabelecendo limite de gasto com pessoal nas universidades e institutos.
O portal do Ministério da Educação esclarece ainda que o Future-se vai permitir que universidades e institutos aumentem as receitas com a captação de recursos. A adesão à proposta é voluntária, mas o governo afirma que quem aderir terá mais flexibilidade para realizar despesas. A proposta do governo também prevê a criação do Fundo Soberano do Conhecimento, voltado para atividades de pesquisa, extensão e desenvolvimento, inovação e empreendedorismo nas universidades e IES. A administração deste fundo será de uma instituição financeira privada.
O presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies), Fernando Peregrino, não concorda com a proposição do MEC. Para ele, na prática, as organizações sociais podem funcionar como cerceadoras da liberdade das universidades. “A OS é uma ameaça real à autonomia. O contrato de gestão é o gatilho dessa ameaça”, lamentou.
Para o ex-reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e integrante da comissão externa da Câmara que acompanha o desenvolvimento das ações do MEC, Roberto Sales, “não se pode entregar a gestão das instituições públicas de ensino superior para uma OS. Isso seria ferir frontalmente o princípio da autonomia universitária, que está previsto na Constituição Federal”. Para Sales, o trabalho da comissão, que fez várias visitas a instituições públicas e privadas de ensino superior, foi atropelado pelo lançamento do Future-se.
Falta de clareza
A reitora da Universidade de Brasília (UnB), Márcia Abrahão Moura, apontou falta de clareza com relação a vários pontos da minuta do projeto divulgada pelo Ministério da Educação. Entre esses pontos, citou a dispensa de chamamento público para a adesão aos contratos de gestão, a falta de informações sobre o comitê gestor do programa e a previsão de que metas e indicadores de governança serão estabelecidos depois, por “ato do ministro da Educação”. A dirigente ressaltou ainda que a minuta não aborda o financiamento público das instituições federais de educação superior, não faz menção às fundações de apoio.
“O financiamento público das instituições federais, previsto na Constituição, não é abordado na minuta, o que causa estranhamento. O texto propõe a criação de um fundo de natureza privada como alternativa para o financiamento de pesquisa, inovação e internacionalização e também não há clareza sobre como vai funcionar e qual é o papel do Estado nesse fundo”, destacou Márcia Abrahão.
A reitora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Soraya Soubhi Smaili, apontou que o programa causou muitas dúvidas e que isso gera a necessidade de ajustes para que haja clareza no texto. “Nós temos mais dúvidas que certezas com relação a essa proposta e muitas coisas precisam de esclarecimentos e também de muito debate antes que qualquer decisão seja tomada. Uma mudança dessa natureza precisa de muita discussão e de uma construção conjunta”, defendeu. Ela criticou, ainda, o modelo de consulta pública adotado pelo MEC.
Para a reitora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Wanda Hoffmann, o projeto pode trazer vantagens, mas há riscos relevantes, como a ameaça à autonomia universitária. Outro risco apontado pela reitora é o de que a adesão diminua ainda mais os recursos públicos destinados às instituições de educação superior. “O Future-se não pode ser visto como a solução para o funcionamento básico das universidades, mas, caso ajustado, aprovado e abraçado pelas instituições, tem o potencial de trazer benefícios significativos”, disse a reitora, que apontou entre as possíveis vantagens o fim do teto para recursos próprios e a flexibilização da execução.
Debate
Os dirigentes das universidades presentes à audiência defenderam que o projeto precisa ser intensamente debatido e incorporar as contribuições da comunidade universitária brasileira. Segundo as reitoras e reitores, as universidades são espaços democráticos, abertos ao debate. Destacaram, ainda, que em quase todas as instituições a minuta do projeto foi submetida aos Conselhos Universitários, que são as instâncias deliberativas das instituições.
Na UFMG, explicou a reitora Sandra Goulart Almeida, a discussão sobre o Future-se está enviesada pelo próprio cenário de cortes de recursos. “Nós tivermos um bloqueio, em maio, de 30% do nosso orçamento. Não estamos tendo condições de fazer uma gestão devida porque não temos como planejar nossos gastos. Há uma expectativa de um desbloqueio, mas estamos ainda aguardando essa sinalização e isso, de certa forma, contamina muito da discussão que está sendo feita para o Future-se em termos de pensar o futuro da nossa universidade. Como é que podemos pensar no futuro se o presente está comprometido”.
Recursos próprios
Outro ponto defendido pelos reitores e reitoras presentes à audiência pública foi a aprovação da PEC 24/2019, em análise na Câmara dos Deputados. O texto propõe excluir dos limites das despesas primárias de cada instituição aquelas que são financiadas por receita própria, de convênios ou doações.
Atualmente, apesar de pertencerem à unidade orçamentária arrecadadora, os recursos próprios gerados pelas universidades não são revertidos integralmente para seus orçamentos. A reitora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Pires de Carvalho, afirmou que a UFRJ é uma grande captadora de recursos próprios, mas está penalizada. “Estamos com várias contas atrasadas, com possibilidade de parar o funcionamento, e temos recursos próprios, receitas próprias bloqueadas. A PEC 24 é fundamental para o funcionamento das universidades e para que haja um incentivo à captação de recursos”, finalizou.
Avaliações e críticas foram realizadas por dirigentes das maiores universidades federais brasileiras, entre elas a UFMG, além da UFRGS, UFRJ, UNB e outros reitores e reitoras, além de integrantes da comissão externa da Câmara dos Deputados e lideranças do sistema federal de ensino superior.