O colesterol alto hereditário (hipercolesterolemia familiar) está relacionado diretamente com a redução do número de novos neurônios, chamado cientificamente de neurogênese adulta. Esse fator se torna um potencial ao desenvolvimento de depressão e à perda de memória em seres vivos. Esses foram os principais achados da pesquisa de doutorado de Daiane Fátima Engel, Programa de Pós-Graduação em Bioquímica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e publicado recentemente na revista científica Molecular Metabolism.
O artigo Impaired adult hippocampal neurogenesis in amouse model of familial hypercholesterolemia: Arole for the LDL receptor and cholesterolmetabolism in adult neural precursor cells foi liderado pela professora Andreza Fabro de Bem, orientadora de Daiane e vinculada ao Departamento de Bioquímica da UFSC, e contou com a participação de mais duas pesquisadoras da UFSC (Jade de Oliveira e Patricia de Souza Brocardo) e quatro pesquisadores vinculados ao Centro Alemão de Doenças Neurodegenerativas (German Center for Neurodegenerative Diseases – DZNE).
Hipercolesterolemia e doenças vasculares são campos de pesquisa de Andreza que, por volta de 2005, começou a investigar também os efeitos do colesterol no sistema nervoso, tais como memória e aprendizado. “No laboratório começamos a pesquisar a relação da demência com os transtornos depressivos. Buscamos alguma alteração celular no cérebro dos camundongos nocaute que pudessem explicar dois comportamentos: perda de memória e comportamento tipo depressivo”, recorda Daiane.
Há uma região no cérebro chamada de hipocampo que controla essas duas características no sistema nervoso. A particularidade dessa estrutura é armazenar as lembranças, processo que só é possível em decorrência das sinapses (encontro entre dois neurônios), além de conter células-tronco mesmo na fase adulta. “Temos células precursoras neurais adultas que, durante toda a vida, são capazes de se diferenciarem em novos neurônios e melhorar esse processo de aprendizado, memória e regulação do humor”, explica Engel.
A redução na formação de novos neurônios acontece naturalmente à medida que envelhecemos, entretanto a pesquisa revelou que essa redução por causas metabólicas pode acelerar o processo e desencadear casos de demência e depressão muito mais cedo. “Um distúrbio metabólico não somente pode favorecer o aparecimento de doenças cardiovasculares, mas também pode afetar o sistema nervoso central, e isso se torna um problema de saúde pública importante”, enaltece Daiane.
Apesar de o colesterol alto ter um efeito sobre o sistema nervoso central, ele pode ser prevenido por todos os fatores que previnem as doenças metabólicas, tais como exercícios físicos, hábitos de vida saudáveis, redução do estresse, atividades de lazer e relaxamento. “É um comportamento que previne as doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, como também doenças associadas, por consequência”, diz a pesquisadora.
O artigo está disponível em acesso aberto para todas as pessoas que tenham interesse sobre a pesquisa com foco na doença metabólica (hipercolesterolemia) sobre o sistema nervoso central.
Processo de pesquisa
A lacuna de pesquisa de Daiane começou ao questionar uma hipótese de estudos dos anos 1990, que observaram a relação entre o aumento do colesterol circulante e o desenvolvimento, algum tempo depois, da doença de Alzheimer. Testes realizados com coelhos confirmaram essa hipótese: uma dieta rica em colesterol apresenta agregados proteicos no cérebro, característicos no Alzheimer.
Com a evolução dos estudos em camundongos nocautes mostrou que uma redução nos níveis de colesterol no sangue para aqueles animais que possuíam o receptor LDL (Receptor de Lipoproteína de Baixa Densidade). “Ou seja, o animal que não tem esse receptor fica com o colesterol aumentado. Se observou que esses animais apresentavam prejuízo de memória, confirmando a hipótese já observada em coelhos, e que estavam emergindo em humanos”, relata Engel.
Com a maturidade das pesquisas in vivo realizadas no Laboratório da UFSC, na metade do doutorado Daiane sentiu a necessidade de aprofundar e melhorar as técnicas de pesquisa. Foi neste momento que encontrou um grupo na Universidade Técnica Dresdem, na Alemanha, com expertise em células-tronco no hipocampo. “Na literatura sempre aparecia o nome do pesquisador Gerd Kempermann, especialista em neurogênese adulta. Entrei em contato, eles se interessaram pela minha pesquisa e, por meio de um projeto aprovado pela Capes, trabalhei com as células em cultura”, explica ela.
Na Alemanha, a pesquisadora atuou no Genômica da Regeneração do professor Kempermann para responder a seguinte questão: será que é o fator genético ou o aumento do colesterol que está prejudicando as células-tronco? Com as células isoladas em um modeloin vitro, a pesquisadora descobriu que o aumento do colesterol está envolvido com a diminuição da neurogênese adulta. “Foi um dos primeiros estudos que mostraram que uma doença metabólica, que tem a ver com o processamento de um tipo de lipídio, que é o colesterol, pode estar afetando as células-tronco do sistema nervoso central”, enaltece Daiane.
Ao utilizar um modelo genético de hipercolesterolemia durante o estudo foi possível constatar que o aumento do colesterol pode estar relacionado com causas genéticas ou com o estilo de vida. Entretanto, alguns estudos clínicos têm mostrado que as pessoas com hipercolesterolemia familiar são mais suscetíveis à perda de memória do que as que têm por hábitos de vida. Ou seja, o fator genético parece ser bem importante. “Tínhamos duas variáveis: tanto no aumento do colesterol no animal, como na mutação do receptor. O que eu fiz no exterior foi isolar essas duas variáveis. Aprendi uma técnica de cultura de células, isolei a célula-tronco de cérebro de camundongos e essas células eram saudáveis, de um animal normal. Em cultura eu manipulei geneticamente o receptor de LDL e, em outro experimento, eu coloquei o colesterol nessas células. Então eu tinha a variável genética num experimento e a variável ambiental (aumento do colesterol) em outro. Vi que as duas coisas afetam a proliferação dessas células em cultura. Assim, esse foi um dos principais achados: tanto o fator genético quanto o fator aumento de colesterol prejudicam a neogênese adulta”, relata Daiane.
Boa parte do estudo in vivo foi desenvolvida na UFSC, sendo que o aprendizado adquirido na Alemanha por Engel retornou para a universidade por meio de novas ferramentas ao Programa de Pós-Graduação em Bioquímica. “É muito importante pesquisas como essa na UFSC para o refino das metodologias. Avançamos bastante no campo da neurogênese adulta”, finaliza a pesquisadora.