O MEC apresentou, em julho do corrente ano, projeto visando garantir a sustentabilidade financeira das Universidades e Institutos Federais denominado Future-se, surpreendendo Reitores, dirigentes, a comunidade universitária nacional e a sociedade. Apesar de o nome remeter a esperança de financiamento mais adequado para as Instituições Públicas, as análises iniciais demonstraram sua fragilidade e inconsistências, bem como os riscos embutidos à autonomia universitária. Sem surpresas, quase a totalidade dos Conselhos Superiores das Universidades Federais rejeitou o projeto.
A consulta pública, então anunciada pelo MEC e realizada pelo CGEE, foi questionada pelo Ministério Público Federal; e as opiniões dos quase 10 mil respondentes (hoje referidas como “pré-consulta pública”) foram utilizadas para elaborar a segunda versão do projeto Future-se. A atual minuta de Projeto de Lei, PL, foi preparada por grupo de especialistas jurídicos e acadêmicos e divulgada em meados de outubro, sendo as principais alterações: a) retirada dos eixos governança e gestão (claramente contrários à autonomia institucional); b) inclusão das Fundações de Apoio como instituições capazes de contratar com as IFES, além das Organizações Sociais (pois o relacionamento das IFES com Fundações já é regulamentado); c) troca do termo contrato de gestão por contrato de desempenho para definir o compromisso das IFES com o MEC (evitando-se assim a adoção obrigatória do modelo de Organizações Sociais); d) restrição das fontes adicionais de recursos aos Fundos Patrimoniais (anteriormente previa a cobrança de pacientes com planos de saúde nos Hospitais Universitários, em clara ofensa à legislação vigente). Assim, a segunda versão do PL é melhor do que a primeira, mas a proposta continua pouco detalhada e confusa, e mantém uma concepção que traz riscos claros à autonomia de gestão financeira das universidades.
SBPC e ABC vêm liderando mobilização da classe política em defesa da educação superior de qualidade, e da ciência, tecnologia e inovação. Ao entender a importância e os riscos presentes, especialmente neste momento de crise de financiamento, e do possível impacto do Future-se sobre a configuração das Universidades, a Comissão de Educação do Senado organizou uma série de debates. O segundo encontro foi realizado no dia 4 de novembro e controu com as contribuições do MEC (através da Secretaria de Ensino Técnico), da Fineduca (Associação de Pesquisa em Financiamento da Educação), do Comandante do Instituto Militar de Engenharia (Instituição de Ensino Superior vinculada ao Ministério do Exército), do Andes (Sindicato docente), da Fasubra (Sindicato dos servidores técnicos administrativos) e da SBPC; a audiência pública foi presidida pelo Senador Jean Prates.
Breve análise sobre Future-se (texto que embasou a contribuição da SBPC ao debate)
A minuta do PL propõe a instituição do Future-se – Programa Universidade e Institutos Empreendedores e Inovadores. Seus objetivos, agora pouco melhor definidos, são financeiros e acadêmicos: propiciar recursos adicionais de financiamento, incentivar a captação de recursos próprios e viabilizar a destinação destes recursos para a própria instituição; bem como promover e estimular o desenvolvimento científico/tecnológico e a inovação, a visão empreendedora e a internacionalização das IFES e dos IFs (Art. 1º). O Artigo 2º define que as medidas previstas devem ser orientadas pelos princípios da gestão pública, em obediência à autonomia universitária (como se uma nova Lei pudesse afrontar princípios constitucionais).
Os eixos acadêmicos de ação obrigatórios do projeto (ciência, tecnologia e inovação, empreendedorismo e internacionalização, Art. 3º) são atividades já contempladas nos Planos de Gestão das IFES e IFs, são parte do fazer acadêmico de todas as nossas instituições, e, por óbvio, medidas de apoio financeiro a estas serão sempre bem-vindas. A questão da sustentabilidade financeira (expressão retirada na segunda versão) é matéria de difícil equacionamento, especialmente na vigência da EC95/2016, que limita o orçamento das Universidades aos valores de 2017, por 20 anos. Foge do escopo do texto elaborar sobre a trágica situação do estrangulamento orçamentário das IFES, que somente em outubro tiveram a liberação de 100% do orçamento 2019 que havia sido contingenciado desde os promeiros dias da gestão do Ministro Weintraub, contudo fica claro que o Future-se é oferecido pelo MEC como uma estratégia para superar a insuficiência orçamentária/financeira imposta às Universidades na vigência do novo regime fiscal (que certamente irá se aprofundar até 2036!).
Alguns pontos críticos do PL sugerem que o Future-se dificilmente atingirá seus objetivos, pois : a) trata de ações acadêmicas que também são do escopo de outro Ministério, o MCTIC; não há qualquer evidência de articulação na elaboração da proposta; b) mantém a possibilidade de interveniência de Organizações Sociais para a gestão do projeto, em séria ameaça a autonomia de gestão das instituições de ensino; c) define a criação de Fundos Patrimoniais como fontes de recursos adicionais, sem apresentar qualquer evidência da viabilidade financeira de tais fundos; d) a eventual aprovação do PL no formato atual provocará mudanças na forma de gestão das IFES e IFs que implicam no enfraquecimento de sua missão social, logo a adesão ao Programa enfrentará séria resistência junto às comunidades acadêmicas.
Da participação das Instituições de Ensino Superior
Para participar do programa as Instituições devem celebrar contrato de desempenho com o MEC, tendo como contrapartida a concessão de benefícios especiais, recursos financeiros e outros, prevendo indicadores pera mensuração do desempenho nos eixos acadêmicos já citados (Arts. 5º a 7º). As Universidades já exercitam a definição clara de objetivos, metas e estratégias na formulação de seus Planos de Desenvolvimento Institucional, PDIs, e Planos de Gestão; estes documentos são aprovados pelos Conselhos Superiores, depositados no MEC e acompanhados pelos órgãos de controle externo. Um novo projeto institucional (para o Future-se), compreendendo apenas parte da missão acadêmica (excluidos ensino, extensão, ..), significaria acrescentar burocracia sem, necessariamente, ampliar o alcance acadêmico da Universidade.
Para atingir os resultados em cada eixo, define-se que as instituições poderão celebrar contratos e convênios com Fundações de Apoio ou com Organizações Sociais (Art. 11º). Sugere claramente que não há obrigatoriedade de tal contratação, o que pode soar positivamente. Contudo, mais adiante ficará evidente a inconsistência quando o PL define a gestão dos recursos provenientes dos Fundos Patrimoniais.
As Universidades (e talvez hoje já todos os IFs) estão habituadas a contratar com Fundações de Apoio; tal relacionamento institucional está definido em Lei e amparado por decisões dos Conselhos Superiores e é auditado por organismos externos de controle. Porém, chama atenção a nova possibilidade de projetos para produção e comercialização de insumos, produtos e serviços (Art. 13º). Tanto quanto saibamos, esta é uma mudança substantiva na forma de operação das Fundações, com adoção de uma lógica empresarial de funcionamento (haverá embasamento legal?).
Bem mais complexa é a proposta de contrato a ser estabelecido com Organizações Sociais, OS (Art. 14º). O modelo das OS foi implantado no final dos anos 90, com sucesso. Há ótimos exemplos no âmbito do
MCTIC: CNPEM, CGEE, EMBRAPII. São todas organizações que cumprem missões relevantes ao desenvolvimento científico e tecnológico do país, mas estas funcionam de forma centralizada, isto é, estabelecem contratos com ICTs ou mesmo com Ministérios para realizar projetos ou ações específicas. Não fica claro como adaptar o modelo de OS para atuação no Future-se: seria criada uma única OS para contratar com todas as IFES do país? Ou poder-se-ia criar diversas OS para contratar com Universidades ou IFs? A criação de OS não é trivial (veja-se o exemplo do CNPEM), tampouco sua qualificação junto aos Ministérios para posterior atividade. Demonstrando uma visão peculiar do MEC sobre o modelo OS, ou talvez conhecimento limitado, o PL (Art. 14) sugere que os Núcleos de Inovação e Tecnologia, NITs, poderiam vir a constituir OS. Ora, os NITs (previstos na Lei de Inovação e implantados em todas as IFES) são parte da estrutura de apoio à inovação das Universidades. Não se vislumbra forma de retirar seus integrantes (servidores públicos) e atividades do seio das instituições para constituir uma Organização Social que será contratada para fazer o que hoje já é realizado. Por fim, contratar pessoa jurídica de direito privado, OS, para gerenciar ações acadêmicas (nos 3 eixos do Future-se) e para administrar os recursos dos Fundos Patrimoniais macula e ofende a autonomia de gestão das Universidades.
Dos eixos acadêmicos do Future-se
Passamos agora a comentar brevemente os eixos do Programa, iniciando pelo eixo pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação. Os três artigos do PL (Arts. 15 a 17) referem-se prioritariamente à interação com empresas parceiras para o desenvolvimento de projetos tecnológicos e de inovação. Reforçam pontos já definidos pela Lei de Inovação, muitos dos quais já praticados pela Universidades mais consolidadas em pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Há previsão de que a Universidade poderá negociar valores além daqueles previstos para execução de projetos, gerando assim recursos a serem integralizados no Fundo Patrimonial (comentado a seguir). Seria uma nova rubrica, ou taxação?
Também deixa claro que poderá o servidor público receber remuneração em razão de elaboração, execução e êxito do programa desenvolvido, bem como de exploração de direito de propriedade intelectual. Esta seria outra forma de definir a possibilidade de bolsas associadas a projetos de pesquisa e inovação, tema extensamente discutido e hoje regulamentado e auditado junto às Universidades e Fundações de Apoio?
O PL define bom apoio a atividades de incentivo e disseminação do empreendedorismo na comunidade universitária (Arts. 18 a 22). Contudo, é nebulosa a questão da criação de Sociedade de Propósito Específica para gerir ações de empreendedorismo. Qual a necessidade para sua criação?
As propostas do eixo internacionalização são demasiado breves (Arts. 23 e 24) e estão aquém das políticas de relações internacionais já praticadas por várias Universidades Federais e apoiadas pelo MEC (sobretudo a partir do Programa Ciência sem Fronteiras, do Idioma Sem Fronteiras e de inúmeros Projetos de Cooperação da Diretoria Internacional da CAPES).
Apesar do aperfeiçoamento da versão atual do Future-se, o conteúdo referente aos eixos acadêmicos no PL, associado ao fato de que não houve interlocução do MEC com o conjunto das Universidades para a concepção do mesmo, sugere que os autores do Projeto desconhecem muitos aspectos da relevância e contribuição das IFES para os avanços da ciência, da tecnologia, da inovação, do empreendedorismo e da internacionalização do país, sobretudo aqueles ocorridos na última década, bem
como sobre a própria organização institucional que está na base de tais avanços. Certamente, há muitos avanços possíveis nos planos acadêmicos e de gestão, e as Universidades estão abertas à discussão; porém o Future-se não atende a tal demanda. É sintomático que a manifestação de praticamente todas as IFES seja de rejeição à proposta.
Das fontes adicionais de financiamento
O ponto mais crítico do Future-se é o das fontes adicionais de financiamento. Inicialmente, depreende-se que as atividades acadêmicas não citadas no PL – ensino, extensão, cultura, assistência estudantil – serão financiadas pelo orçamento das IFES, segundo preceito constitucional (Art. 212) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Porém, não há qualquer menção ao Plano Nacional de Educação, importante diretriz extensamente discutida e aprovada no Congresso Nacional, cuja execução está muito aquém das metas definidas, tanto pela falta de financiamento como de políticas públicas.
A principal dúvida da comunidade acadêmica paira sobre a criação e a constituição do Fundo Patrimonial do Future-se (Arts. 26 a 29). Além da União, quais serão os demais “patrocinadores”? Há estudos prospectando possíveis doadores, ou sobre o total a ser potencialmente arrecadado com a alienação de bens imóveis da União? As Universidades poderiam alienar seus bens imóveis? Como a arrecadação própria das universidades passaria a compor o Fundo (e isto seria bom para as Universidades)? Qual a escala temporal para que a renda com a alienação dos imóveis da União passe a integrar o Fundo? Com tal nível de indefinição fica a imagem de que o pilar financeiro do Future-se é extremamente frágil, se for de fato viável.
Outro complicador é o de que a gestão do Fundo exigirá a interveniência de organização executora, Fundação de Apoio ou Organização Social (Art. 28). Ora, a possibilidade de intervenção já apresentada no Art. 11 agora é definida como obrigatoriedade. Salvo um erro não desprezível de edição, parece que os próprios autores do Future-se ainda têm dúvidas sobre este aspecto.
Culminando a proposta, define-se um Fundo Soberano do Conhecimento (multimercado), fundo de investimento a ser administrado e gerido por instituição financeira (Arts. 30 a 34). É igualmente nebulosa a plausibilidade de constituição deste Fundo, bem como a participação da União como cotista. Na vigência da EC 95 a participação da União em tais Fundos não irá ferir o novo regime fiscal (destinação de recursos ou bens para rubrica de gasto hoje inexistente)?
Mesmo que houvesse clareza nas definições e que os Fundos acima referidos sejam realidades plausíveis a médio e longo prazo (e não há qualquer evidência de que possam vir a ser), a forma como apresentados e o atual contexto de financiamento das IFES e IFs aponta o Future-se como uma estratégia de deslocar para o “mercado” (Fundos) a obrigação da União de financiar a educação superior e a ciência e tecnologia. Haverá interesse de mercado para tal? Com a imagem que o MEC vem construindo das Universidades e de seus professores, quem teria interesse em investir nestes Fundos? E o MEC vai agregar mais uma missão, a de constituidor (e co-gestor) de Fundos? Ora, esta parece ser uma construção demasiado elaborada e distante da realidade das Universidades e Institutos Federais, como do próprio Ministério.
O Future-se é necessário?
Tentando buscar alternativas ao financiamento dos importantes eixos acadêmicos definidos no PL sugerimos aos congressistas medidas para descontingenciar os Fundos Setoriais. Os Fundos Setoriais de Ciência e Tecnologia, criados a partir de 1999, são instrumentos de financiamento de projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação no país. As receitas dos 16 Fundos em operação são oriundas de renúncia fiscal da União (relativas à contribuição de empresas por exploração de recursos naturais e impostos sobre a atividade de alguns setores industriais) e compõem parte do FNDCT, hoje gerenciado pela Finep. Aliás, muito da infraestrutura de pesquisa hoje disponível nas Universidades foi conquistada através do apoio da Finep por meio dos Fundos Setoriais. Esta é uma demanda recorrente da SBPC e da comunidade científica e constitui uma alternativa factível para o financiamento da ciência, tecnologia e inovação, e até simples se comparada à criação de Fundos Patrimoniais, A título de exemplo, em 2019 foram arrecadados seis bilhões de Reais para os Fundos Setoriais, hoje utilizados como “reserva de contingência” da União.
De outra forma, um dos apelos do Future-se é o de que as instituições poderão captar recursos com atividades de pesquisa, inovação e empreendedorismo e utilizar tais recursos, agora próprios, para constituir Fundos e utilizá-los para apoiar as próprias atividades acadêmicas (somando-se aí a internacionalização). Mas as Universidades já geram recursos próprios e possuem mecanismos para utilizá-los. A dificuldade está na interação com o MEC – Ministério da Economia, que não autorizam orçamento (possibilidade de execução) para um recurso financeiro que já está na Universidade! Esta liberação era comum (até 2015, com certeza). Será necessária uma nova Lei para que um mecanismo já conhecido possa ser aperfeiçoado?
Para concluir
Através do Projeto de Lei de criação do Future-se o MEC busca garantir novas fontes de recursos para o financiamento de eixos acadêmicos das IFES e IFs, nomeadamente de ciência, tecnologia e inovação, empreendedorismo e internacionalização. A definição das ações acadêmicas apoiadas em pouco acresce ao que já é praticado pelas IFES. A definição de interveniência de Organizações Sociais traz séria ameaça à autonomia de gestão financeira universitária, que é preceito constitucional. A proposta de criação de Fundos Patrimoniais como fonte de financiamento é confusa e, tanto quanto se saiba, não está embasada em qualquer estudo que aponte a viabilidade da estratégia; assim o pilar de sustentabilidade financeira do Future-se fica fragilizado. Mais razoável seria a reativação dos Fundos Setoriais (descontingenciamento e distribuição via FNDCT) gerenciados pela Finep, estratégia de sucesso praticamente descontinuada desde o ano 2017. O Future-se revela que o MEC se propõe a criar, através do mercado financeiro, alternativa para a incapacidade da União de financiar as Universidades e Institutos Federais no regime fiscal em vigor. Mais lógico e adequado seria revisar a EC95/2016, criando aí mecanismos para garantir o adequado financiamento da educação e da ciência e tecnologia (e das outras áreas sociais); isto será inevitável pois algumas áreas do Governo já estão quase paralisados nestes poucos anos de vigência do atual regime fiscal.
As Universidades e as entidades representativas reconhecem que práticas acadêmicas e de gestão podem, e devem ser aperfeiçoadas, e estão dispostas a participar da construção de bons projetos. É preciso que o MEC abra diálogo franco para esta construção, pois a concepção do Future-se carrega vício de origem difícil de ser superado. É igualmente fundamental o engajamento do Congresso Nacional para criar/apoiar propostas alternativas, pois disto depende o futuro da educação superior e da ciência e tecnologia, áreas nas quais o investimento é condição necessária para o desenvolvimento sustentável do país.
(Publicado no JC on line em 14/11/2019)
Carlos Alexandre Netto é Professor Titular da UFRGS, Conselheiro da SBPC e Membro Titular da ABC