Ataques envolvem desde a asfixia financeira até a criminalização de acadêmicos nos campi
“Aquele grau de autogovernança necessário à efetiva tomada de decisão por parte das instituições de educação superior em relação a seu trabalho acadêmico, seus padrões, sua gestão e atividades vinculadas”. Essa definição de autonomia universitária está no Comentário Geral nº 13 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. E serve bem para mostrar que essa tal autonomia é assunto urgente e inescapável na contemporaneidade.
De acordo com o documento Closing academic space – repressive state practices in legislative, regulatory and other restrictions on higher education institutions, divulgado no ano passado pelo International Center for Not-for-Profit Law (ICNL), as universidades enfrentam ataques crescentes a sua autonomia, que vão de interferências nas estruturas de gestão e excessivo controle financeiro a restrições a pesquisa e ensino e até criminalização de acadêmicos e militarização de campi. “Interferências assim minam severamente a capacidade das universidades de conduzir livremente ensino e pesquisa e empreender o questionamento crítico”, afirma o relatório.
A cientista social Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), observa que, tirando alguns países sob interferência direta de governos autoritários, como a Hungria, talvez a maior ameaça à autonomia universitária seja a lógica neoliberal da austeridade e da privatização do espaço público. “Isso se faz de forma sutil, como no modelo espanhol, que introduziu as anuidades para os cursos superiores. Asfixia-se o orçamento, força-se aos convênios com agentes privados”, diz.
A ascensão de governos autoritários ameaça, por princípio, a academia. “Esses governos não se dão bem com universidades, porque representam seu oposto, que é a liberdade de pensamento. As instituições são perigosas para os regimes totalitários porque formam as elites intelectuais”, afirma Esther Solano.
Atos coloquiais e luta por democracia
O desprezo pelas elites intelectuais é uma marca do governo do primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, como escreveu Thiago Amparo, advogado e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV/SP), em artigo na Folha de S.Paulo (22/6/2019). Amparo passou cinco anos entre o mestrado e o doutorado na Central European University (CEU), instituição bancada pelo megainvestidor George Soros que foi instada, por meio de legislação criada especialmente contra ela, a mudar sua sede para Viena.
No artigo, Thiago Amparo conta que, “na Hungria sob Orbán, atos coloquiais como ir a um concerto em uma sinagoga em evento contra discurso antissemita, estudar em uma universidade progressista ou organizar um festival de cinema LGBT adquiriram novo significado político: passaram a implicar lutas cotidianas pela manutenção de espaços onde se podia respirar ares democráticos”. Para Amparo, a Hungria não é um caso isolado; tanto à direita, como na Polônia, como à esquerda (ele cita a Venezuela), governos promovem a erosão de instituições democráticas. Na Hungria, enfatiza ele, um “projeto iliberal de democracia tem sido extraordinariamente bem-sucedido. Orbán usa seu poder político para sufocar instituições independentes”.
Outro testemunho sobre a relação do governo húngaro com a academia foi dado pelo repórter Rafael Cariello, da Revista Piauí. Em texto publicado na edição de janeiro do ano passado, Cariello, que havia feito extensa reportagem sobre a vida e a política na Hungria, em 2017, volta ao tema para reafirmar que Orbán, desde que chegou ao cargo, em 2010, assumiu o controle de instituições criadas justamente para conter seu poder, impulsionou jornais, TVs e portais de internet favoráveis a sua gestão e tomou medidas como a privatização de instituições universitárias e o fechamento de cursos de estudos de gênero.
Estudo divulgado pela European University Association (EUA), em 2017, demonstra que não há tendência uniforme na Europa, quando o assunto é a liberdade acadêmica. De acordo com o relatório Autonomia universitária na Europa, que analisa 29 países, segundo 30 indicadores relativos a uma década, não há tendência natural de aumento de autonomia das universidades europeias, e o monitoramento mostra que o tópico continua a ser intensamente discutido. “Em ambiente político internacional que é tenso, promover autonomia como princípio basilar continua a ser altamente relevante, uma vez que tentativas de limitar ou minar a autonomia podem tomar diferentes formas”, afirma o documento.
Turquia, Rússia, Polônia, Jordânia
A publicação Closing academic space, do ICNL, reúne exemplos de problemas enfrentados pelas comunidades acadêmicas pelo mundo. Após a tentativa de golpe na Turquia, em julho de 2016, o Conselho de Educação Superior ordenou a renúncia temporária de 1.577 dirigentes universitários para, segundo o governo, “restabelecer a autonomia” dessas instituições. Na Rússia, lembra o estudo, lei federal de 2013 limitou a autonomia financeira das universidades, e o Ministério da Educação e Ciência toma as decisões sobre orçamento pelas instituições estatais.
Na Polônia, continua o documento do ICNL, há relatos de que o governo tentou silenciar acadêmicos cujo trabalho desafiava a narrativa histórica, com foco no Holocausto, de preferência do partido Lei e Justiça, de direita, nacional-conservador. Haveria uma lei que criminalizava a expressão “campos de morte poloneses”. Estudantes de graduação chineses são convencidos a completar cursos sancionados pelo Estado, e currículos controlados pelo governo em todas as universidades cubanas reforçam a ideologia revolucionária. Na Jordânia, a comunidade acadêmica tem reportado a presença de agentes da inteligência nas instituições, para monitorar conferências e outras atividades.
O trabalho do ICNL chama a atenção para a importância de compreender a extensão das práticas repressivas estatais, uma que vez que autonomia universitária “é estreitamente vinculada ao funcionamento saudável das sociedades democráticas”. Os responsáveis pelo estudo afirmam que é necessário “acompanhamento cada vez mais cuidadoso, por parte de atores diversos, das restrições legislativas e administrativas que se impõem à autonomia universitária e o estabelecimento de padrões internacionais claros que apoiem o exercício da liberdade acadêmica”.
Perguntado sobre suas impressões sobre a liberdade de professores, pesquisadores e instituições no cenário internacional, o educador e sociólogo Gregório Durlo Grisa achou necessário ressaltar que a autonomia universitária é um conceito dinâmico, “que varia no tempo e no espaço, conforme circunstâncias históricas, políticas e jurídicas”. Ele considera que a ascensão de grupos políticos de inclinação autoritária “traz a reboque medidas que ferem o conceito clássico de autonomia universitária”.
“Os casos de Hungria, Polônia e Brasil são puxados, entre outras coisas, pela crença de que a universidade é lócus de formação de quadros ‘progressistas’ ou ‘de esquerda’. Daí o ataque, primeiro, às ciências humanas, tomadas como inúteis ou promotoras de valores negativos (marxismo cultural, doutrinação etc.)”, afirma o professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), acrescentando que o conservadorismo moral é um dos motores para ações restritivas.
De acordo com Grisa, algumas medidas de cerceamento são comuns em diferentes países, como centralizar no executivo a nomeação de gestores universitários, instrumentalizar órgãos de controle, de avaliação e de autorização para favorecer iniciativas de grupos consoantes com a ideologia governamental e promover restrições no orçamento como mecanismo de chantagem para exigir mudanças institucionais. “No caso da Venezuela, embora algumas motivações sejam distintas, foram tomadas medidas como intervenção em entidades representativas, criação de instituições dependentes do executivo e tentativas de abafar expressões de oposição que nascem nas universidades”, afirma.
Legislação inovadora
A ideia geral de autonomia universitária, lembra o físico José Goldemberg, professor emérito da Universidade de São Paulo, remonta a quase mil anos atrás, quando foi criada a Universidade de Bolonha, na Itália – a instituição é a mais antiga da Europa. Também de acordo com o ex-ministro da Educação, “a autonomia disciplinada na Constituição brasileira de 1988 tem poucos precedentes; a Carta dá maior autonomia às universidades públicas brasileiras do que a existente na maioria dos países”. Ele ressalta que a autonomia das universidades estaduais paulistas, regulamentada em 1989, “é inovadora e provavelmente a única do mundo, e se compara apenas à da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos”.
A professora Nina Ranieri, colega de Goldemberg na USP, assente que não se pode mesmo falar de inspiração exógena da autonomia brasileira. “Não há nada parecido na Europa e nos Estados Unidos, nossos colegas de lá tomam um susto quando se informam sobre o caso das universidades públicas brasileiras, sobretudo as de São Paulo”, diz a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas (Nupps).
A Declaração de Bolonha, de 1999, que integrou os sistemas universitários europeus, forçou a revisão de cursos e concessão de créditos, entre muitos outros aspectos, e levou países como França, Itália, Espanha e Portugal a descentralizar suas estruturas de ensino, que, por exemplo, passaram a organizar-se internamente de acordo com suas peculiaridades regionais.
Na França, ainda segundo Nina Ranieri, só em 1968 criou-se a possibilidade de as universidades elaborarem seus próprios estatutos. “A Lei Faure atribuiu a elas autonomia didática, administrativa e financeira, mas isso era mais nominal que real.” Em 2007, as instituições ganharam o poder de se organizar da forma que entendessem mais adequada para decidir sobre seus cursos e pesquisas. “O Ministério da Educação Superior e Pesquisa Científica continua fiscalizando e regulando as atividades, mas não impõe mais um modelo único. Por outro lado, a maior parte do financiamento é feita pelo Estado, o que significa controle”, salienta a professora, acrescentando que só em 2007 as universidades foram autorizadas a criar fundações para facilitar a cooperação com empresas.
O professor Ivan Domingues, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG, afirma que o sistema francês goza de grande autonomia, sobretudo no que concerne à estrutura acadêmico-científica, mas não é equilibrado ou igualitário. “Enquanto as grandes escolas, la crème de la crème, usufruem de orçamento confortável, certas universidades enfrentam déficits recorrentes e devem se virar como podem; outras ainda, mesmo algumas de grande porte e com maior dotação orçamentária, são levadas a buscar fontes de financiamento em empresas e corporações privadas, reorientando suas atividades rumo a setores do mercado mais rentáveis”, diz o coordenador do Núcleo de Estudos do Pensamento Contemporâneo.
Se, por um lado, multiplicaram-se as fontes de financiamento, por outro o governo tem priorizado a implantação de cerca de 15 universidades de excelência mundial, às quais é destinada soma consideravelmente maior do orçamento nacional. “Esse é um dos fatores que agravam as desigualdades, uma vez que se cria um sistema mais e mais competitivo, com potencial de destruir as bases igualitárias republicanas”, explica Ivan Domingues, que fez leituras e consultas a colegas estrangeiros para embasar sua análise à reportagem.
Fundações na Inglaterra
A Alemanha tem um sistema mais descentralizado com relação ao francês, uma vez que as instituições são estaduais. As universidades são gratuitas, como as da França, mas seus orçamentos globais acabam definidos no âmbito das assembleias legislativas, que avaliam propostas do poder executivo. Cada instituição é livre para estabelecer sua política de remuneração de docentes e pesquisadores. As fontes de verbas se dividem entre o governo, a União Europeia e parceiros privados, o que também, segundo Domingues, gera desigualdades, inclusive decorrentes de políticas públicas como aquelas associadas à implantação de universidades de pesquisa de classe mundial.
A situação das universidades públicas na Inglaterra é diferente, informa o professor da UFMG. Nacionais e detentoras de muita autonomia, elas funcionam como fundações e são regidas por dispositivo jurídico-administrativo distinto das similares europeias. “O Estado cobre uma parte, inclusive relativa aos salários, e a universidade deve acionar outros meios para complementar os proventos, seja por meio de fontes extras dos colleges, como em Oxford e Cambridge, seja por meio de convênios ou aportes privados”, comenta Domingues.
Na Itália, há equilíbrio entre intervenção do governo e liberdade de gestão no interior das universidades. Há normas referentes a todo o sistema, definidas pelo Estado nacional ou pela União Europeia, mas elas podem ser recalibradas em cada instituição. Chama a atenção, no caso italiano, o papel relevante desempenhado por conselhos que reúnem os dirigentes das universidades.
Um aspecto importante da autonomia está relacionado à escolha dos reitores. Na Itália, variam as regras, mas, em geral, eles são eleitos diretamente pelo corpo docente, por ampla representação dos servidores técnicos e administrativos e por estudantes, com menor peso. Na Inglaterra, a seleção é feita por colégios eleitorais de tamanho variado, e a opção pode recair sobre alguém de fora da universidade ou até do país.
Na França, segundo Ivan Domingues, desde 2010, quando foram introduzidas as últimas mudanças, os dirigentes máximos são eleitos pelos conselhos de administração das universidades, compostos de estudantes, professores e personalidades que não pertencem à academia – representantes de empresas privadas, da administração pública, do mundo da cultura, do sindicalismo. Na Alemanha, é comum que os colégios eleitorais sejam menos numerosos; eles são compostos, em sua maior parte, por professores, e apenas titulares podem ser eleitos.
Sociedade dentro da instituição
Nos Estados Unidos, as universidades gozam de bastante autonomia em relação aos governos estaduais, mas como ressalta o professor Naomar de Almeida Filho, ex-reitor da Universidade Federal da Bahia, “a sociedade está dentro da instituição”. Os boards (conselhos) têm poder de decisão sobre investimentos e alguns são integrados por intelectuais e artistas, como foi o caso do maestro Leonard Bernstein, na Universidade de Columbia. “Tudo lá é cobrado, e o modelo é o do laissez-faire, segue a lógica do mercado. Instituições abrem e fecham, e departamentos se mantêm ativos se estão competindo”, afirma ele, adicionando que nos EUA a força está nas instituições como um todo. As escolas têm pouca independência.
A antropóloga e cientista política Eunice Durham reforça que praticamente não há gratuidade nas públicas americanas, que têm liberdade de auto-organização, e mantêm, muitas delas, os colleges, instâncias responsáveis pelos primeiros anos de educação superior. “As universidades americanas trabalham com financiamento direto para projetos, público e privado. Dependem muito desse financiamento extraorçamentário. Elas gerem os recursos dos fundos privados, muitas vezes lançando mão apenas dos rendimentos”, diz a ex-presidente da Capes e atual diretora do Núcleo de Pesquisa sobre Ensino Superior da USP.
Ivan Domingues, da UFMG, salienta que o governo central americano deve prover recursos para várias finalidades (pesquisa, assistência estudantil etc.) a todos os tipos de universidades, inclusive as privadas. “O governo federal interfere nas ações das instituições apenas indiretamente, em razão de mudanças de políticas e práticas de financiamento e de ações afirmativas, por exemplo, o que pode afetar prioridades das universidades”, ele informa. A escolha do reitor ou presidente, no caso dos Estados Unidos, fica a cargo dos conselhos, e “o processo em nada se assemelha a uma democracia representativa – não se pergunta a opinião de professores, técnicos e estudantes”.
Nas universidades asiáticas, um dos aspectos mais marcantes é a grande simbiose entre o setor público e as grandes empresas, como ocorre no Japão e na Coreia do Sul. A Universidade Nacional de Seul abriga em suas dependências instalações de megacorporações como a Samsung, Hyundai e a LG. Enquanto nesses dois países o ensino e a pesquisa são predominantemente orientados para o mercado, na China o Estado dita as normas, de acordo com os interesses econômicos e de desenvolvimento, e não há como falar em autonomia universitária.
Clélio Campolina, ex-reitor, professor emérito da UFMG e ex-ministro da Ciência e Tecnologia, observa que as universidades têm ligação direta com o Ministério da Educação e com a Academia Chinesa de Ciências, que é órgão governamental e mantém laboratórios dentro e fora das instituições acadêmicas.
‘Autonomia regional’
No cenário latino-americano, uma das preocupações é a construção de um novo conceito de “autonomia regional”, que oriente a educação superior, a ciência, a tecnologia e a inovação, para facilitar o acesso ao conhecimento na região. Na última edição da Conferência Regional de Educação Superior (Cres), iniciativa da Unesco, realizada em 2018, em Córdoba, Argentina, o professor Valls Esponda, representante das universidades mexicanas, destacou que “a autonomia é conquista social irreversível e constitui proteção especial para resguardar as universidades de interesses externos”. Para Esponda, é preciso falar dessa autonomia hoje, “em um mundo integrado e global e numa conjuntura política muito grave para a América Latina, em que emergem populismos de direita, por exemplo, no Brasil e na Colômbia”.
Conferência Regional de Educação Superior (Cres 2018), da Unesco, realizada em Córdoba, na ArgentinaMarcílio Lana / UFMG
Antonio Ibarra, coordenador acadêmico da União de Universidades da América Latina e do Caribe (Udual), que congrega quase 250 universidades de 22 países, afirmou recentemente que “as universidades têm sido atingidas em sua autonomia de formas diversas, como limitações ao financiamento público, ações destinadas a transformar o conhecimento em mercadoria, restrições à opinião crítica, deterioração das condições de ensino e imposição de padrões de validação do conhecimento descontextualizados e sem pertinência social”.
As entidades que representam as universidades latino-americanas mencionam situações críticas na região, como a agressão policial a estudantes que se manifestavam pacificamente na Costa Rica, em setembro de 2018, os ataques de naturezas variadas à Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua, também no ano retrasado, e as políticas que, segundo a Udual, “ameaçam a livre determinação das universidades federais brasileiras”. Em carta entregue na Embaixada do Brasil no México, em junho de 2018, o Conselho Executivo da entidade condena medidas do governo brasileiro que “constituem grande atropelo à vida intelectual e institucional das universidades do país”.
Na Venezuela, segundo publicou o jornal El País em 29 de agosto do ano passado, a Corte Suprema, que é controlada pelo presidente Nicolás Maduro, determinou novas regras para a renovação de reitores nas universidades nacionais, redutos de oposição ao governo. A decisão, segundo a reportagem, “significa um golpe à autonomia democrática dessas instituições, garantida na Constituição”. A sentença confere peso individual equivalente aos votos de docentes, estudantes – que são muito mais numerosos – egressos, funcionários da administração e de obras.
A decisão estabelece ainda, segundo o El País, que, se as eleições não forem realizadas em prazo determinado, os cargos ficam vagos e podem ser ocupados por interinos indicados pelo governo. Esse aspecto da sentença, salienta o texto assinado por Florantonia Singer, é fonte potencial de novos conflitos.