O desafio imposto pelo novo coronavírus colocou pesquisadores de várias áreas diferentes no centro do debate público. De repente, as mesmas sociedades que viram crescer movimentos como o antivacina passaram a acompanhar e a atentar para temas como protocolos de desenvolvimento e segurança de medicamentos, modelos preditivos na virologia e análises sobre a saúde mental.
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No quinto episódio da série UFC Talks, o pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade, Prof. Jorge Herbert Lira, analisa como os pesquisadores brasileiros vêm desempenhando seu papel diante dos desafios da pandemia e qual o espaço da ciência pós-COVID-19.
ufc{talks} – Até a COVID-19, a sociedade assistia a um movimento muito forte anticiência. Muitas pessoas avaliam, agora, que a ciência deve retomar um lugar central na sociedade. O senhor concorda? Em caso positivo, como isso deve-se refletir?
Jorge Lira – De fato, essa suposta tendência anticientífica pode ser um reflexo de algo mais grave, a saber, a precariedade do letramento científico da sociedades, em todos os estratos econômicos e de escolaridade. Mesmo os que tivemos educação formal “completa” fomos apresentados, via de regra, a uma visão distorcida e empobrecida do fazer e pensar científicos.
Quantos não se recordam da química escolar como horas a fio a memorizar a tabela periódica ou a recitar reações químicas como trechos de um texto em uma linguagem hermética? Que impressões a grande maioria das pessoas guarda da matemática, além da ideia de uma profusão de procedimentos e regras operacionais, memorizadas até o dia da próxima prova?
Portanto, a falta de cultura científica não nos permite avaliar corretamente o papel da ciência no desenvolvimento de um povo. Sabemos, vagamente, que existe ciência nos gadgets tecnológicos que usamos, nas redes sociais e serviços de streaming que aliviam estes dias de isolamento. Passamos a perceber, de forma crua e dramática, que a ciência é decisiva também no entendimento da COVID-19 e de sua propagação e enfrentamento, desde aspectos epidemiológicos ao desenvolvimento de fármacos, vacinas e equipamentos hospitalares.
Perceberemos, na retomada, aprofundar-se o abismo entre o País e nações com sistema de educação científica melhor. Portanto, para usar um lugar comum, a crise traz oportunidade de mostrarmos à sociedade o ativo que a ciência representa, do ponto de vista de bem-estar social e econômico. Somos chamados a dar respostas rápidas para as urgências do momento e também a pensar as novas estruturas que devem emergir no mundo pós-pandemia.
ufc{talks} – A ciência brasileira vem cumprindo seu papel nessa crise? E a UFC? Qual sua avaliação?
Jorge Lira – Os cientistas brasileiros, os nossos, da UFC, inclusive, estão entre os mais criativos do mundo, exatamente por não contarmos, até os dias de hoje, com uma política científica de Estado. Temos que manter e aprimorar nossas pesquisas na montanha-russa de investimentos em ciências, que, há cerca de 10 anos, estão em franco declínio.
Crises financeiras como a que se desenha agora afetam o orçamento para C&T&I em todo o mundo, mesmo em nações desenvolvidas. No entanto, não solapam de todo as políticas de Estado para o setor. No Brasil, a despeito de muitos avanços e da intensa participação das universidades, institutos de pesquisa e sociedades científicas na construção de marcos legais, programas e projetos, ainda não podemos dizer que temos um plano nacional para ciência, tecnologia e inovação.
Tampouco o setor privado ainda é aberto a “tomar” riscos, em geral, e, em particular, a apoiar projetos científicos ousados. De forma genérica, o apoio do setor empresarial à ciência é condicionado a resultados muito específicos ou mais imediatos. Além disso, ainda temos dificuldades de diálogo entre academia e empresas, desde processos de gestão de recursos a definição de resultados.
A UFC tem respondido muito bem a todo esse cenário desafiador, que já vem de antes da pandemia. Temos um crescendo de qualidade na produção científica, com maior expressão internacional, em um número maior de áreas de conhecimento. Contamos com uma grande diversidade em nossas pós-graduações e passamos, creio, por uma salutar renovação de nossos corpos docentes, que têm impulsionado a adequação da UFC a patamares internacionais de excelência.
Em especial, nossos pesquisadores, pós-graduandos e pós-doutorandos têm dado respostas muito rápidas e relevantes aos problemas de várias naturezas criados pela pandemia. Obviamente, [isso tem ocorrido não apenas] no aspecto das ciências médicas, em que registramos um grande número de projetos relativos ao estudo dos efeitos fisiológicos, clínicos ou epidemiológicos do vírus, mas também na interface com as engenharias, na recuperação e prototipagem de equipamentos, como ventiladores mecânicos, como o Elmo, utilizados no tratamento dos infectados em estado grave. Vemos esforços da física, computação e estatística em estudar os padrões e prospectos de disseminação da doença e, além disso, de estudar os cenários viáveis e seguros de retomada das atividades sociais e econômicas.
Temos registro de trabalhos notáveis na geografia e ciências sociais sobre os impactos da COVID-19, especialmente no contexto de baixo IDH. Pesquisadores e alunos da Psicologia de Sobral têm provido programas de assistência psicológica, um enorme suporte neste momento. Há grupos de pesquisa elaborando e disponibilizando ferramentas de ensino domiciliar.
Boa parte dessas ações e várias outras estão compiladas e publicizadas em plataforma nossa (https://bit.ly/3d2d1D2). Este é um quadro muito sintético e parcial do que temos feito como instituição. É importante dizer que, nesse esforço, se diluem as fronteiras aparentes entre ensino, pesquisa e extensão, entre graduação e pós-graduação, entre campi e entre departamentos. Principalmente, temos um trânsito mais intenso entre sociedade e Universidade. Um modelo de integração que, esperamos, tenha vindo para ficar.
ufc{talks} – Falamos de uma possível revalorização da ciência. Mas, se ela não conseguir entregar a tempo uma vacina ou um medicamento para o novo coronavírus, é possível que isso se reverta?
Jorge Lira – Creio que não! Com os cenários piores se confirmando, podemos ter uma onda de posturas irracionais, mas isso nada mais é do que uma opinião ou mesmo um desejo. Penso que ficará ainda mais claro, embora de forma um tanto agressiva, repito, como a ciência será um agente decisivo entre o esgotamento da civilização e sua recuperação.
ufc{talks} – O filósofo Edgar Morin, em uma recente entrevista, chamou a atenção para o fato de que muitas pessoas viam a ciência como “um repertório de verdades irrefutáveis”. A crise do novo coronavírus mostrou que muitos pesquisadores têm ideias conflitantes e que muitas vezes deixa o cidadão comum em dúvida. Como fazer a população compreender que a ciência progride na controvérsia?
Jorge Lira – No outro extremo do que vínhamos falando, oposto a atitudes de anticiência ou ao completo iletramento científico, está o cientificismo, que é uma visão também deturpada do método científico. Entre um de seus aspectos, já apontados por pensadores, está a idealização do cientista “especialista” como um detentor de verdades inquestionáveis, uma espécie de oráculo dos novos tempos.
Ora, Ciência se define por ser falsificável, por ser um conhecimento necessariamente sujeito a revisões. A “verdade” científica não surge de um processo linear, mas de um constante debate. Por vezes, o conhecimento é acumulado de modo progressivo; em outras, há rupturas conceituais e experimentais que reestruturam até os alicerces de uma área ou criam novas áreas.
Um exemplo, novamente em circunstâncias extremas, é a progressão do entendimento sobre o coronavírus. Os cientistas estão no processo ativo de suas pesquisas, praticando o método científico por excelência. No entanto, pela publicidade do tema, o público passa a ver essa dinâmica de perto. Isso pode causar estranheza exatamente por estarmos tão impregnados seja de ignorância científica, seja, o que é ainda pior, de cientificismo.
ufc{talks} – Há risco de a valorização da ciência se dar de forma seletiva? Por exemplo, a valorização das ciências médicas, mas não das ciências sociais aplicadas ou das humanidades?
Jorge Lira – A crise afeta o ser humano e a civilização em todos os seus aspectos. Um claro exemplo de que o pensamento científico sobre essa situação e o que vem depois deve ser integrado: economia e sociologia serão tão vitais quanto a microbiologia e a farmacologia.
No entanto, é preciso que essas especialidades passem a dialogar mais fortemente. É fundamental que as ciências sociais se apropriem de ferramentas quantitativas. É igualmente indispensável que as ciências médicas encontrem na filosofia subsídios para as pesadas questões éticas que vimos serem postas pelas “escolhas de Sofia”, feitas mundo afora.
ufc{talks} – O senhor mesmo citou um dos grandes problemas da ciência, que é a questão do financiamento. Que mudanças são necessárias?
Jorge Lira – Estamos em meio a uma visão política demasiado utilitarista da ciência. Ignora-se, completamente, que um Thomas Edison precisou de um Faraday ou de Maxweel, que as gigantes farmacêuticas dependeram da química básica.
Portanto, elegeu-se um conjunto de áreas tidas como prioritárias por serem, hoje, aquelas mais próximas da tecnologia dominante. Isso é, exatamente, inverter o fluxo. A ciência conduzirá a novas tecnologias, nem sempre de modo linear e imediato, mas certamente, revolucionário.
Será preciso, realmente, repensarmos o modelo de financiamento. Tampouco, podemos ficar no formato, já superado, de uma ciência de torre de marfim. Um equilíbrio deve ser atingido. Senão, tombaremos miseravelmente na vala comum dos países dependentes. Teremos que esperar, servilmente, por produtos vindos da China, dos computadores aos respiradores.