Internacionalização: parceria cria eixo importante nas pesquisas sobre ‘Sul Global’
Desde meados do século XX, o termo “terceiro mundo” é usado para representar o conjunto de países considerados subdesenvolvidos, geralmente localizados na América Latina, África e Ásia. A expressão foi criada pelo economista francês Alfred Sauvy, que, a partir de sua observação acerca dos países do mundo, constatou a existência de uma enorme disparidade política, econômica e social entre as nações, deixando muitas delas marginalizadas no cenário mundial. Entretanto, estudiosos do século XXI indicam que, após o fim da guerra fria e, principalmente no atual contexto político e sociológico em que vivemos, novas concepções das divisões do mundo estão sendo construídas e instauradas.
Em uma sólida parceria com a Universidade de Tübingen, na Alemanha, a Universidade Federal Fluminense, através do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM) vem desenvolvendo estudos sobre uma nova perspectiva na geopolítica mundial: a ideia de “Sul Global”. “Esse conceito é dinâmico e tenta dar conta das complexidades e das contradições que se observa no mundo. Ele passou a ser uma forma de criticar os poderes e os sistemas, muito particularmente o colonialista, que, ao longo de séculos e até hoje, produzem e legitimam saberes e modos de vida”, explica Fernando Resende, docente do PPGCOM e pesquisador do tema.
A cooperação entre as instituições de ensino surgiu do interesse comum na discussão dessa nova concepção. O coordenador do PPGCOM, professor Felipe Trotta, explica que o convite para a parceria veio em 2014. “A universidade alemã nos chamou para participar de um projeto que incluía também instituições de ensino do México, África do Sul, Índia e Senegal. Em 2015, o professor Fernando iniciou a coordenação da primeira pesquisa da UFF em parceria com Tubingen. Desde então, a cooperação nos rende inserções internacionais significativas e promove um intenso intercâmbio entre docentes e discentes das duas universidades”, destaca.
Assuntos relacionados ao racismo estrutural, às questões de gênero, e as perspectivas interseccionais com as quais estamos tendo que lidar de forma mais efetiva, ganham muito quando passamos a contextualizar seus efeitos a partir de uma territorialidade – o ‘Sul Global’ – que há séculos sofre com espoliação, pilhagem e objetificação do corpo do outro. Toda a discussão sobre o genocídio indígena e o processo de escravização do sujeito africano, por exemplo, ganha críticas e contornos muito significativos quando discutidas à luz de um ‘sul’ que se molda a partir das lógicas de poder determinadas por agentes de um chamado ‘norte’ – Fernando Resende
As primeiras conversas aconteceram em virtude de um artigo sobre “Sul Global” publicado por Fernando em uma revista inglesa. “Comecei uma investigação densa sobre esse conceito, que era um caminho de pesquisa que eu já vinha percorrendo, e que passou a ganhar mais solidez com a colaboração com Tübingen. O primeiro projeto conjunto foi o “Literary Cultures of the Global South” (2015-2018). Atualmente, estão em andamento os projetos de pesquisa “Territórios Desconfortáveis: narrativas, imagens e objetos do Sul Global” (PROBRAL CAPES/DAAD – 2019/2022) e “Conflito, mídia e território no Sul Global” (PRINT/CAPES – 2019-2022). Além da parceria com outras instituições internacionais, os projetos contam com a importante cooperação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA/UFF)”, pontua o pesquisador.
A doutoranda do PPGCOM Verônica Lima, que se prepara para um estágio sanduíche na universidade alemã, é um exemplo da expansão da possibilidade de intercâmbio que a parceria incentiva. “Minha pesquisa faz uma crítica ao modelo de sociedade que se constituiu no ocidente e se instalou a partir da racialização mundial. No processo dessa análise, a ideia de ‘Sul Global’ é fundamental, tendo em vista que ela se refere a um conjunto de experiências diretamente marcadas pelo evento colonial. No intercâmbio com Tübingen, poderei aprofundar os estudos relativos ao conceito de temporalidade e suas intersecções com a questão da territorialidade e, consequentemente, suas influências para as relações socioculturais dos países do sul”, relata.
Desde o início da parceria, em 2015, as instituições participantes dos estudos do “Sul Global” promovem anualmente o “International Forum on Global South Studies”. Esse encontro atualiza as discussões que as instituições têm desenvolvido, além de possibilitar o diálogo entre os diferentes pesquisadores. “Organizamos mesas que congregam representantes de instituições distintas, fazendo com que seus trabalhos e reflexões possam entrar em diálogo, algo que tem se mostrado extremamente produtivo. A UFF está presente de forma contundente, como tem sido nos últimos anos, através da presença ativa de professores e alunos do PPGCOM e do PPGA. Em 2021, o fórum ocorrerá de forma híbrida, online e física, entre os dias 29 de junho e 9 de julho. Em breve, disponibilizaremos mais informações no site do Travessia”, informa Fernando Resende.
Além de eventos, discussões teóricas, publicações em livros, artigos e diversas teses e dissertações defendidas e relacionadas aos projetos, um importante resultado dessa cooperação foi a criação do “TRAVESSIA – Centro de Estudos e Pesquisas do Sul Global”, promovido pelo PPGCOM. Em 2021, ele completa um ano de atividades, e abriga atualmente não só professores, mestrandos e doutorandos do PPGCOM-UFF, como pesquisadores de outras instituições, ligados aos projetos em parceria com a Universidade de Tübingen. Da mesma forma, a instituição alemã conta com um centro de estudos dedicado ao tema, o que favorece a cooperação, inclusive com outras instituições e áreas.
Fernando ressalta que uma perspectiva transdisciplinar é importante para a discussão teórica do TRAVESSIA e aponta para a necessidade de incluir pesquisas de outros campos do saber. “A comunicação é uma das possibilidades, mas a ideia é que o centro agregue áreas diversas que tenham como foco discussões relacionadas ao conceito de Sul Global, trilhando um caminho de cruzamentos de diferentes esferas do saber”, explica. Segundo ele, no âmbito local, já existe um diálogo iniciado com pesquisadores dos cursos de antropologia e medicina da UFF”.
O debate sobre o ‘Sul Global’ atravessa muitos saberes, integra disciplinas e departamentos em todo o mundo. Além do mestrado interinstitucional, estamos buscando ampliação da cooperação, com contatos mais intensos sendo feitos com parceiros do México e Senegal. São muitos projetos e desafios que se apresentam a partir da colaboração com Tübingen, matriz de um dos eixos da internacionalização da UFF. Entretanto, para seguir abrindo discussões nesse campo de estudo e formando pesquisadores de ponta na área, também é necessário pensar em estratégias quanto ao cenário atual do investimento em pesquisa no país – Felipe Trotta
Entre novembro de 2020 e fevereiro desse ano, a parceria internacional se solidificou a partir da oferta da disciplina Territórios Desconfortáveis e processos decoloniais: diáspora, escravidão e mediatização do mal-estar colonial, que foi ministrada por vários docentes envolvidos no projeto. “A matéria foi ofertada, de forma simultânea, a discentes localizados em três continentes – América Latina, Europa e África. Essa experiência se mostrou fundamental para consolidar, incrementar e complexificar o processo de internacionalização da UFF”, garante o pesquisador.
O coordenador do PPGCOM, professor Felipe Trotta, anuncia que, nesse momento, a Universidade Federal Fluminense e a Universidade de Tübingen estão dialogando sobre a implementação de um mestrado interinstitucional com dupla titulação nas duas instituições de ensino. “É importante destacar que a parceria com a UFF garantiu avanços significativos também para a instituição alemã. Seu departamento de Letras Romanas tem se qualificado enormemente a partir desse projeto, inaugurando um Mestrado em Sul Global, além de uma disciplina específica sobre cultura brasileira intitulada João Guimarães Rosa”.
Felipe destaca que, atualmente, o desafio é manter o fluxo de colaborações em contexto de redução do financiamento para pesquisa no Brasil. “O debate sobre o ‘Sul Global’ atravessa muitos saberes, integra disciplinas e departamentos em todo o mundo. Além do mestrado interinstitucional, estamos buscando ampliação da cooperação, com contatos mais intensos sendo feitos com parceiros do México e Senegal. São muitos projetos e desafios que se apresentam a partir da colaboração com Tübingen, matriz de um dos eixos da internacionalização da UFF. Entretanto, para seguir abrindo discussões nesse campo de estudo e formando pesquisadores de ponta na área, também é necessário pensar em estratégias quanto ao cenário atual do investimento em pesquisa no país”.
O conceito de ‘Sul Global’ e a complexidade geopolítica do mundo atual
De acordo com Fernando Resende, a noção de “Sul Global” sem dúvida sucedeu o fim da divisão conceitual tripartida – primeiro, segundo e terceiro mundo. O conceito atualiza o que anteriormente era denominado “terceiro mundo”. “Até o começo do século XXI, o planeta era segmentado entre ricos e pobres. Porém, as reconfigurações espaciais, novas dinâmicas e modos de vida nos obrigam a pensar o mundo em termos mais complexos. Os avanços tecnológicos e o processo de globalização trouxeram à tona essa nova concepção, que coloca em questão tanto a ideia de ‘global’ como um sistema que busca homogeneizações, quanto a ideia de ‘sul’ como um paradoxo mais complexo do que o mapa geográfico e a linha do Equador poderiam indicar”, descreve.
Em relação à América Latina particularmente, o pesquisador garante que esses estudos têm sido fundamentais para a compreensão das políticas que fundaram e moldaram o continente. “Assuntos relacionados ao racismo estrutural, às questões de gênero, e as perspectivas interseccionais com as quais estamos tendo que lidar de forma mais efetiva, ganham muito quando passamos a contextualizar seus efeitos a partir de uma territorialidade – o ‘Sul Global’ – que há séculos sofre com espoliação, pilhagem e objetificação do corpo do outro. Toda a discussão sobre o genocídio indígena e o processo de escravização do sujeito africano, por exemplo, ganha críticas e contornos muito significativos quando discutidas à luz de um ‘sul’ que se molda a partir das lógicas de poder determinadas por agentes de um chamado ‘norte’”, alerta.
Para Fernando, aprofundar os estudos nessa temática significa produzir mais reflexões, além de construir aparatos teóricos e metodológicos que colaborem com o enfrentamento dos dilemas que se apresentam em um mundo não mais dividido em dois. “Hoje, a ideia de ‘Sul Global’ tenta dar conta das contradições em que o mundo vive. Por este viés, sul e norte não são pensados no sentido binário, estritamente como divisores, mas na perspectiva de que eles fazem parte de lógicas de poder que reforçam dinâmicas instituídas, e por isso necessitam de constante reavaliação”, conclui.