A Lei nº 12.711/2012, conhecida como “Lei de Cotas”, completa nove anos em 29 de agosto. A Lei representa uma modalidade de ação afirmativa que visa promover a diversidade e a pluralidade no contexto acadêmico. Como uma forma de diminuir as desigualdades socioeconômicas, representa, ainda, um avanço para o acesso ao ensino superior de pessoas negras, indígenas, com deficiência, de baixa renda e oriundas de escola pública.
A fim de trazer esclarecimentos sobre a Lei e seus desdobramentos para quem vai utilizá-la para ingresso na Universidade, o “Em discussão” recebe o pedagogo e pró-reitor adjunto de Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Adilson Pereira dos Santos. Sócio-fundador do Fórum de Igualdade Racial de Ouro Preto, ele atuou ativamente na proposição dessas políticas na UFOP e é considerado referência no assunto em universidades do Brasil.
Como pesquisador, Adilson tem a trajetória acadêmica diretamente relacionada às políticas de cotas. Possui mestrado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), primeira universidade a adotar cotas no Brasil, onde defendeu a dissertação “Políticas de Ação Afirmativa, novo ingrediente na luta pela democratização do ensino superior: estudo de caso da UFOP”. Já no doutorado, realizado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a tese defendida foi “A Lei de Cotas em três universidades federais mineiras”. Com os trabalhos das duas pós-graduações, Adilson publicou dois livros: “Reflexos de Durban em Ouro Preto e sua repercussão na UFOP” e “Gestão Universitária e a Lei de Cotas”.
O que a Lei de Cotas representa efetivamente para o ensino superior?
A Lei de Cotas completa nove anos no dia 29 de agosto de 2021 e uma década no ano que vem. No entanto, as ações afirmativas, das quais Lei é uma modalidade, estão presentes nas universidades públicas brasileiras desde uma década antes. Inclusive, quatro anos antes da aprovação da Lei, a nossa Universidade já adotava uma política nesse sentido. Entre os anos de 2008 e 2012, a UFOP reservou 30% das vagas em todos os seus cursos para candidatos egressos de escolas públicas. A Lei de Cotas representa uma conquista para determinados segmentos sociais, até então alijados das universidades. Se insere num contexto mais amplo de iniciativas na perspectiva da democratização da educação superior com inclusão social. A Lei contribui para o atingimento das metas 8 e 12 do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), que indicam a necessidade de ampliação do acesso ao ensino superior e técnico de nível médio, com inclusão social. Ou seja, mais vagas no geral e foco em grupos com histórico de exclusão.
As cotas são direito de quais estudantes?
As reservas de vagas (cotas) estabelecidas pela Lei de Cotas destinam-se a egressos de escolas públicas, dentre eles, as pessoas de baixa renda, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiências.
Diante da dinâmica de ingresso na universidade federal a partir do SiSU, com as notas do Enem, como se relacionam as cotas e o mérito?
A aplicação das reservas de vagas no SiSU ou qualquer outro processo seletivo não interfere no mérito relacionado ao preenchimento das vagas. O grande “mérito” da Lei de Cotas (e das ações afirmativas) consiste em confrontar a ideia de mérito acadêmico universalista que parte da premissa da igualdade entre os indivíduos, enquanto faz vistas grossas das trajetórias e oportunidades pretéritas dos indivíduos. De tal sorte, as reservas de vagas para determinados grupos fixadas pela Lei de Cotas fazem com que os indivíduos dos múltiplos segmentos concorram entre si. A título de ilustração, um jovem branco de classe média alta, que durante a vida toda estudou em escola privada de elite, bilíngue, que excursionou nas férias ao exterior, visita com frequência museus, assiste óperas etc., não pode (não deve) concorrer em nível de igualdade com outro jovem trabalhador de periferia, que cursou integralmente a Educação Básica em escola pública noturna, com professores mal remunerados, instalações precárias etc. A concorrência isonômica nesse caso é desleal, para não dizer desonesta. As ações afirmativas e a Lei de Cotas almejam, portanto, que tais jovens concorram com os seus pares em termos de igualdade, trajetórias e oportunidades.
Em relação à validação das cotas raciais, quais são os critérios utilizados pela UFOP?
A Lei de Cotas divide as vagas oferecidas nos cursos para dois grupos principais: ampla concorrência e vagas reservadas para egressos de escolas públicas. Todos necessitam ter suas matrículas validadas pela UFOP. Independentemente do grupo, todos os candidatos devem comprovar terem concluído o ensino médio e estarem quites com obrigações civis, militares e eleitorais. Os candidatos às vagas reservadas para egressos de escolas públicas devem, por sua vez, comprovar: 1) ter cursado integralmente o ensino médio em escola pública; 2) quando for o caso, renda familiar bruta per capita de até 1,5 salários mínimos; e ainda 3) a condição étnico-racial declarada, se negro (preto ou pardo), com procedimento de heteroidentificação, e, se indígena, com comprovação documental relativa ao povo-etnia a que pertence; 4) com laudo médico comprovando a deficiência informada. As comprovações variam conforme a inscrição efetuada pelo candidato.
Para falar de cotas pensando na questão racial, é necessário discutir o mito da democracia racial. Como entender esses dois pontos é fundamental para explicar a importância da Lei de Cotas?
Na verdade, deveríamos falar sempre de cotas raciais. No entanto, a ideologia da democracia racial, que conforma a construção da nossa história, acaba colocando para debaixo do tapete as mazelas do racismo à brasileira e seus efeitos nocivos. O racismo está impregnado de tal forma na nossa sociedade, que termina por legitimar desigualdades que só ele explicaria. Por isso, enfrentar o mito da democracia racial e reconhecer o racismo como um problema estrutural grave é tema central no debate das ações afirmativas. Por isso, o procedimento de heteroidentificação (validação) das matrículas nas vagas reservadas para negros é considerada como critério central. No meu entendimento, a Lei de Cotas é conservadora nesse particular, assim como a Política de Ação Afirmativa adotada pela UFOP entre 2008 e 2012. A primeira subordinou (negou) o critério racial em favor dos critérios de procedência escolar e renda. A norma da UFOP, por sua vez, o omitiu. Nas duas situações, percebo as mãos silenciosas do racismo estrutural operando e negando a dívida histórica com a população negra.
Qual a importância de outras políticas de ação afirmativa para a redução dos desnivelamentos sociais?
Ao criticar a falta de coragem de confrontar o racismo, não desconsidero a importância de as ações afirmativas focalizarem em múltiplos segmentos com histórico de desigualdades. É legítimo que elas considerem egressos de escolas públicas, pessoas de baixa renda, grupos étnico-raciais, pessoas com deficiências, mulheres, LGBTQAI+, refugiados etc. Portanto, na minha avaliação, numa sociedade elitista como a nossa, o tratamento prioritário de grupos em situação de desvantagem é fundamental no acesso à educação, ao trabalho e emprego, na comunicação etc.
No que se refere às fraudes, quais as medidas a universidade toma para preveni-las e combatê-las?
Quando se fala em “fraude” na Lei de Cotas, imediatamente há uma associação às vagas reservadas para negros. Uso fraude entre aspas por considerar que nem tudo que assim é chamado de fato o é. Explicando melhor, a Lei de Cotas destina vagas a pessoas autodeclaradas negras (pretas ou pardas). Considerando que durante quatro anos de vigência da Lei essa autodeclaração foi tomada pelas instituições como único mecanismo para comprovação desse direito, resta observar que houve abusos no uso da autodeclaração. Pessoas socialmente não lidas (vistas) como negras, e, portanto, que não são alvo do preconceito racial, estavam usufruindo deste benefício. Com isso passou-se a adotar a heteroidentificação como mecanismo de controle social da implementação dessa política pública. No início, usei fraude com aspas porque há pessoas que se autodeclaram como negras que não necessariamente tentam fraudar (cometer um crime), identificam-se como tal, porém não são socialmente lidas dessa maneira. De tal sorte, a heteroidentificação não é uma peneira para capturar fraudadores, mas sim um mecanismo de controle social, visando a rigidez da política pública e a garantia de que a Lei, no tocante às vagas reservadas para negros, sejam destinadas às pessoas alvo do racismo e preconceito racial na sociedade brasileira. No início, mencionei que o risco de tentativa de ocupação indevida de vagas não ocorre apenas nas vagas para negros, por isso a UFOP procede à validação em relação a todos os critérios da Lei: procedência escolar, renda, etnia, raça e deficiência. Comissões específicas, capacitadas para tal, analisam cuidadosamente cada candidato.
De que maneira as cotas no ensino superior contribuem para a diminuição da desigualdade socioeconômica e do preconceito contra negros e pessoas com deficiência na sociedade de modo geral?
Os beneficiários das ações afirmativas não são apenas para as pessoas individualmente, apesar de obviamente a oportunidade educacional ser capaz de contribuir para a mobilidade social. No entanto, toda a sociedade se beneficia com elas, temas antes inexistentes ou ocultados entram na agenda.