Por meio da bioacústica, pesquisa coordenada por professor da UFJF monitora comportamento desses cetáceos
Com uma incrível capacidade de comunicação, os golfinhos são animais que utilizam a acústica para interagir com o meio ambiente. No entanto, o aumento no número e trânsito de embarcações turísticas pode trazer sérios prejuízos para a vida desses mamíferos marinhos. Esse é o ponto de partida da pesquisa “Monitoramento acústico passivo e observacional de delfinídeos em ilhas oceânicas brasileiras”.
Coordenado pelo professor Raul Rio Ribeiro, do Departamento de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o estudo tem como principal objetivo entender os impactos antropogênicos na natureza. “No caso dos golfinhos, há alterações no comportamento, na distribuição, e inclusive no tempo de permanência na ilha”, informa.
Com estimativa inicial de cinco anos de duração, a investigação começou com a instalação dos equipamentos na ilha de Fernando de Noronha que irão captar os sons ininterruptamente por um período de quatro meses em 2021. “Esperamos realizar esse monitoramento anualmente para ter um retrato de longo prazo e identificar as variações sazonais e temporais no repertório acústico desses animais”, aponta.
A fim de compreender as diferenças geográficas, a proposta é aumentar o número de locais de monitoramento na ilha e depois expandir para outras ilhas oceânicas: Atol das Rocas, Arquipélago de São Pedro e São Paulo, Arquipélago de Trindade e Martim Vaz.
“Não há uma pessoa que consiga ficar indiferente à presença de um golfinho, tamanha a beleza e carisma que eles possuem” (Raul Ribeiro)
Os pesquisadores acreditam que os golfinhos têm vocalizado de maneira diferente em algumas áreas, como próximo ao porto por conta da movimentação gerada pelo turismo náutico. “Sabemos que eles têm essa capacidade de modulação, podem aumentar ou diminuir a frequência dos seus sons, de acordo com o ruído de fundo ao qual estão expostos. Queremos entender melhor como se dá essa dinâmica e qual adaptação acústica eles têm feito”, sinaliza o pesquisador.
O golfinho-rotador
O termo popular “golfinhos” engloba, na verdade, inúmeras espécies dos cetáceos, da ordem de mamíferos marinhos exclusivamente aquáticos (Cetartiodactyla, infraordem Cetacea), que tem cerca de 89 espécies – número que, segundo Ribeiro, pode variar de acordo com a classificação. Deste grupo, em torno de 37 espécies são da família dos delfinídeos, como alguns botos e as orcas.
Conhecidos cientificamente como Stenella longirostris, por ter o corpo alongado e o focinho longo, os golfinhos-rotadores têm esse nome devido ao seu comportamento de saltar fora d`água e realizar até sete rotações em torno do próprio eixo. Por isso, são conhecidos como os acrobatas do oceano. Eles vivem em águas oceânicas tropicais, sendo a espécie mais fácil de ser encontrada em Fernando de Noronha. É também a terceira espécie de golfinho mais abundante do mundo.
“Eles são mamíferos marinhos que, como nós, amamentam seus filhotes e necessitam emergir da água para respirar o ar. Além de serem extremamente carismáticos, são animais reconhecidamente muito inteligentes e brincalhões, que fazem jogos lúdicos entre si. Além disso, há transmissão de conhecimento entre eles, passada entre gerações”, sintetiza.
Raul Ribeiro, que no registro prepara drone para captação de imagens aéreas, considera que a natureza está pedindo socorro (Foto: Ocean Sound)
Ainda que não seja possível precisar o grau de vulnerabilidade dos golfinhos-rotadores, há muitas espécies que estão ameaçadas de extinção. A vaquita ou boto-do-pacífico já está praticamente condenada, restando apenas 10 indivíduos em todo o planeta.
Acústica avançada
“Os sons são vitais para os golfinhos. Existem espécies que conseguem transmitir a identidade de cada individuo, criando um som único como um nome próprio. Eles enxergam o mundo através do som. Compreender a linguagem desses animais é compreender como eles interagem com a vida”, afirma.
O docente explica que a interação com o ambiente se dá por meio de um biossonar: “ao emitir sons de alta frequência, os cliques alcançam determinadas estruturas e os refletem, fazendo com que esses sinais sonoros retornem ao ouvido interno e gerem uma imagem na cabeça dos golfinhos”. Esse complexo mecanismo é também conhecido como ecolocalização.
A visualização por meio desses sinais sonoros é tão precisa que eles conseguem identificar a estrutura rochosa ou relevo, o tamanho de uma presa ou predador, e outros detalhes como a textura ou composição de determinado elemento. As vocalizações emitidas pelos golfinhos são feitas por diferentes combinações de assobios e cliques.
Citando as baleias e sua capacidade de produzir canções, Raul Ribeiro ressalta que ainda pouco se sabe sobre a linguagem acústica desses seres vivos. “Cada vez mais está sendo possível identificar o quão complexo são esses sons e como eles são utilizados na comunicação e interação entre eles.”
No vídeo a seguir, é possível ouvir trecho de um dos áudios captados pela equipe do projeto durante o experimento.
Metodologia
Além da bioacústica – “o estudo do som desde a propagação, emissão, transmissão, até a recepção, aplicado aos seres vivos” –, a pesquisa também associa técnicas observacionais. Para isso, são utilizados drones para captar imagens desses cetáceos na superfície quando fazem suas acrobacais, assim como gravações subaquáticas, onde eles passam a maior parte do tempo.
Portanto, a associação dessas técnicas permite avaliar o comportamento dos golfinhos em três níveis: subaquático, aéreo e acústico. Para a captação do som, o pesquisador menciona que são utilizados dois tipos de hidrofones, um que capta todo tipo de ruído e outro que seleciona os cliques feitos pelos golfinhos.
Um desses equipamentos foi doado por empresa internacional para a ONG criada por Raul Ribeiro, a Ocean Sound. O outro é fruto da parceria com o pesquisador da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Linilson Padovese. O estudo também tem parcerias com pesquisadores de outras instituições do Brasil e exterior, com destaque para a colaboração com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), por meio da pesquisadora Lilian Hoffmann.
Mesmo sendo um curso novo, o professor decidiu criar a linha de pesquisa aplicada aos cetáceos na graduação de Medicina Veterinária, com a finalidade de gerar conhecimento para que possa servir de subsídios aos gestores na formulação de políticas públicas voltadas ao meio ambiente e preservação da biodiversidade.
Em sua visão, o fato de a UFJF não ter fronteira com o litoral mostra que é preciso sair da zona de conforto para atender uma demanda urgente ambiental ligada aos oceanos. “A água que passa pelos rios em Juiz de Fora vai chegar aos mares”, exemplifica e lembra que todos podem contribuir com esse e todos os demais ecossistemas.
“A problemática do microplástico, do aquecimento global, todas essas questões ambientais são partes de uma engrenagem única. A gente não precisa morar na Amazônia para contribuir e ter ações ecologicamente corretas, como separar o lixo ou consumir de forma racional.”
Para além da ciência
Natural de Santos, Ribeiro conta que sempre esteve perto do mar e já acumula quase uma década de experiência como mergulhador. Para ele, em qualquer cidade do país, é possível dar conta do impacto que o ser humano está gerando na natureza. “O lixo que chega aos oceanos tem refletido em diversas questões ambientais, interferindo ainda nas mudanças climáticas e dos regimes de chuva. Há ainda as alterações comportamentais de inúmeros animais, como é o caso dos golfinhos”, alerta.
A preocupação e o desejo de preservar os oceanos e a vida marinha motivaram o pesquisador a fundar a organização não governamental Ocean Sound, constituída por pesquisadores científicos multidisciplinares engajados com a ciência cidadã e educação ambiental, que aplicam técnicas observacionais e bioacústicas para o ambiente submarino.
Sobre a primeira parte da atividade de campo realizada na Baía dos Golfinhos em Fernando de Noronha, o cientista afirma que não se trata de um dia de trabalho, mas de encantamento. “Não há uma pessoa que consiga ficar indiferente à presença de um golfinho, tamanha a beleza e carisma que eles possuem. Como pesquisador, procuro manter o distanciamento, mas é um acúmulo de energia muito boa, é fantástico”, assegura.
Para aqueles que se interessaram e desejam conhecer mais sobre os sons do oceano, Ribeiro deixa como sugestão a música So Whale, do álbum “Alma da Terra” do saxofonista Roger Marza. A canção utiliza sons captados pela Ocean Sound durante seus experimentos.
Outras informações: ONG Ocean Sound