Em 2007, foi lançado o livro sobre Ciências e Sociedade (Sciences et sociétés, VINCK, 2007) em que o autor colocava a importância da ciência no enfrentamento de temas sociais voltados para o combate a epidemias como a gripe aviária, a busca por um desenvolvimento sustentável, dentre outros. Mal podia prever o autor que, mais uma vez, as instituições de ciências seriam chamadas para combater um vírus que provoca a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, o vírus SARS-CoV-2. Em menos de um ano, vacinas foram produzidas em colaboração internacional intensa entre universidades, institutos de pesquisa e empresas farmacêuticas.
Hoje, um grande desafio consiste na luta pela suspensão temporária das patentes para que os países possam produzir em alta escala a vacina entendida enquanto bem público mundial, acessível a todos. Mas a Sociedade precisa estar consciente da importância do ensino e pesquisa e, no caso do Brasil, envolvendo-se na luta dos pesquisadores e suas instituições. Este artigo tem, pois, o objetivo de desenvolver duas questões postas por VINCK (2007) que acreditamos trazem importantes ensinamentos à ciência brasileira: como a ciência se organizou em cada período histórico? Que instituições de apoio à pesquisa foram implantados nas últimas décadas? Trata-se de construirmos aqui uma narrativa que tenha a participação da sociedade, dos jovens estudantes e professores em especial, pois acreditamos que um País cuja cidadania se constrói junto com a educação pública de qualidade e em contato direto com instituições de ciências, alcança sua cidadania mais rapidamente e torna-se menos vulnerável à narrativas que negam a importância do conhecimento científico e sua contribuição à resolução de problemas sociais.
Assim, Vinck (2007) busca respostas às questões acima por meio dos conceitos da Sociologia do Conhecimento ou Sociologia das Ciências que trata das diferentes formas de estudo das ciências, das técnicas e suas relações com a sociedade. Ela se constrói em diálogo com outras disciplinas das ciências sociais como filosofia, história, economia, psicologia. Para Vinck (2007) a ciência é “um fenômeno social e histórico ligado a uma forma particular de organização da sociedade”, possuindo características que a distinguem de outras atividades: autonomia e capacidade de resistir às influências externas e rigor no uso do método científico.
A ciência na Antiguidade é muito bem documentada em “A Universidade, Uma História Ilustrada” (SANTANDER, 2010). Seus vários artigos mostram como a ciência se organizou em instituições como a Academia de Platão que, em torno do ano 388 a.C “abriu suas portas a personalidades que possuíam formação e que se definia por tendências muito diversas” e o Liceu de Aristóteles (334 a.C) cujas aulas eram ministradas publicamente. Ambas foram instituições “novas” no sistema de educação na Grécia, em paralelo às escolas e ginásios que junto com a família constituíam a base do sistema educativo grego. Registre-se também o elevado grau de desenvolvimento da ciência na China, com a Universidade na China Imperial (124 a.C.), integrada no Ministério de Cerimoniais, um dos nove ministérios existentes na época, cujo ensino era ministrado por “eruditos”, repartidos em 14 cátedras. Estes não eram professores (no sentido que entendemos) mas funcionários estatais que se destacavam por suas conquistas escolásticas. A registrar também as “madriçais” que eram colégios de “altos estudos” localizadas próximas às mesquitas onde se ensinava as ciências islâmicas, destacando-se o Colégio do Direito islâmico, e as disciplinas literárias e filosóficas.
Na passagem da Antiguidade para o Renascimento, a ciência se desenvolve, organiza-se e se difunde por meio da tradução dos clássicos nos mosteiros, ao mesmo tempo em que no século XII, vai surgir a Universidade medieval cuja origem é marcada pelas disciplinas clássicas – filosofia, direito, teologia, medicina – onde são precursoras as Universidade de Bologne (1088), Oxford (1096) Paris (1170), Modena (1175), Cambridge (1209), Salamanca (1218), Montpellier (1220) Pádua (1222), Nápoles (1224), Bagdá (1227), Toulouse (1229), Siena (1240), Valhadolide (1241), Múrcia (1272), Coimbra (1308) e, na America, a Universidade da República Dominicana (1538),. São Marco, Peru (1551) e México (1551) (WIKIPEDIA, 2021).
Nos séculos XVII e XVIII, a comunidade científica também passa a se agrupar em torno das Academias de Ciências, originadas da Academia de Platão. É com o Renascimento e a importância das ciências da matemática, física, química, que vão se criar a Academia Del Lincei (1603), a Academia del Cimento (Academia de Experimento), em Florença (1657). Como bem mostra Vinck (2007), com a revolução inglesa e a criação da Royal Society (1662) que fornecem as bases para a legitimação e reconhecimento da ciência e de seu papel e valor na sociedade. E com a criação da Academie des Sciences na França (1666) ocorreria o que Vinck (2007) chamou “o movimento de institucionalização da ciência”.
A ciência no Século XIX : os laboratórios de pesquisa
No século XIX a ciência conhece dois formatos institucionais Vinck (2007):
i) Uma comunidade científica homogênea se agrupa em torno das Academias de Ciências já citadas e que possibilitaram a institucionalização da ciência nos séculos anteriores. As Academias ganham mais destaque internacional com a Académie des Sciences da Suécia, que instituiu o prêmio Nobel, em 1901;
ii) Os laboratórios pertencentes às Universidades que, integrados ao ensino, buscam atrair os melhores alunos para as atividades de pesquisa, realizando aplicações da ciência, surgindo daí as chaires disciplinares de pesquisa aplicada. O grande exemplo ocorre na Alemanha com a criação em 1810, da famosa Universidade de Berlin com seus laboratórios de pesquisas experimentais. Na segunda metade do século XIX, em pleno momento da revolução industrial na Europa, impulsionada pela eletricidade e ferrovias, os laboratórios universitários se internacionalizam, exercendo também papel central na organização da pesquisa e na formação de recursos humanos. Eles se estendem também ao setor privado, com Thomas Edson criando a empresa Menlo Park em 1876, surgindo ainda laboratórios da Bayer em 1881, Kodak 1886, Standard Oil 1889, Du Pont 1890, General Eletric 1900, Westinghouse 1903. Nos EUA são criadas em 1860, instituições universitárias de pesquisa como o MIT, e a John Hopkins University com uma forte base de pesquisa, vindo a Universidade de Harvard em seguida.
Nas primeiras décadas do século XX, no contexto das duas guerras mundiais, as primeiras instituições nacionais são criadas para financiar as pesquisas, cujos científicos deixam de trabalhar de forma isolada e vão se agrupar em equipes nos laboratórios, já em uma perspectiva internacional, com a realização de congressos e publicações. Em 1915, são criados o National Research Council nos EUA e o Conseil Consultif de la Recherche na Inglaterra. A França se destaca no fomento às atividades científica com a criação em 1921, do Institut National de Recherche Agronomique (INRA), e em 1930, surge o famoso CNRS – Centre National de la Recherche Scientifique (Centro Nacional de Pesquisa Científica), que passa a desempenhar a função de apoio à pesquisa básica e aplicada. Em seus mais de 90 anos de vida, sempre contando com apoio do Estado, o CNRS tem tido intensa atuação na certificação dos grandes laboratórios de pesquisa, conferindo-lhes uma espécie de selo de qualidade, bem como na contratação de pesquisadores e no financiamento de seus projetos de pesquisa. Outro exemplo bem sucedido vem dos EUA, com a criação no pós II Guerra Mundial, da National Science Foundation (NSF) criada em 1950, pelo Presidente Harry Truman, para financiar a pesquisa básica americana em diversas áreas do conhecimento.
No Brasil, o CNPq – desempenha papel estratégico de fomento à pesquisa
Em artigo anterior aqui publicado (Jornal APC n°4, encontrado em www.academiapc.org), ressaltamos os primeiros passos para a organização da ciências no Brasil, cujo fato marcante foi a criação da Academia Brasileira de Ciências (ABC) em 1916, tendo sido precedida da criação de nossos Institutos Butantã (1901) e Fundação Oswaldo Cruz (1900), de quem nos orgulhamos tanto e que têm sido essenciais nos esforços para vacinar a população hoje. O grande marco para a gestão da pesquisa brasileira ocorreu em 1951, com a criação do Conselho Nacional de Pesquisa – CNPq por meio de decreto do presidente Dutra (WIKEPEDIA, 2021). Cabe em outro artigo, mostrar suas ações nesses 70 anos completados e sua importância estratégica para a pesquisa brasileira.
A criação do CNPq, que viria a se transformar em 1975, no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, mantendo, todavia, a sigla CNPq, ocorreu no contexto do pós-Guerra (a exemplo da NSF americana) e representou para o Brasil, na hora em que se acelerava seu processo de urbanização e industrialização, um momento decisivo para sua independência científica e tecnológica e para promover a formação de recursos humanos de alto nível. À criação do CNPq estavam associados a criação em 1948, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF, 1949), do Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA, 1950) e do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA, 1952). A essa estrutura nacional de pesquisa se associava a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, depois acrescido do S de social (BNDES, 1952) e da Petrobrás (1953) a partir da campanha popular “O petróleo é nosso”. Um outro artigo deverá ser dedicado à criação em 1951, da CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, que sempre exerceu papel absolutamente essencial na estruturação da pós-graduação brasileira e na formação dos professores para a educação superior do Brasil.
O desafio hoje, lutar pelo financiamento público à pesquisa e inovação brasileira
O problema concreto que se coloca hoje é a iminente desestruturação do sistema de pesquisa brasileiro, que vem sendo construído com imenso esforço nas últimas décadas, pela absoluta insuficiência dos recursos financeiros alocados pelo Governo Federal ao MCTI e, em especial, ao CNPq. Conforme matéria publicada no Jornal da USP em 09/04/2021, sob o título “Orçamento 2021 compromete o futuro da ciência brasileira”, para 2021, o MCTI receberá apenas R$ 8,3 bilhões de reais, quando em 2020, este recurso foi de R$11,8 bilhões, ou seja, uma redução de 29% em um orçamento já largamente insuficiente. O recurso reservado para “despesas discricionárias”, que é o valor efetivamente disponível para investimentos em pesquisa é de apenas R$ 2,7 bilhões em 2021, 15% a menos do que em 2020 e 58% a menos que em 2015. Segundo esta matéria, os recursos alocados para o CNPq serão irrisórios, da ordem de R$ 23,7 milhões de reais. Decorrerá daí o corte nas bolsas de pós-graduação, que tira perspectivas de futuro para os jovens pesquisadores, atinge os projetos de pesquisa como o CNPq Universal, essenciais para manter a capacidade de pesquisa nos laboratórios. Esses cortes ocorrendo em um momento de grave pandemia, quando a população mais precisa da ciência e de vacinas que estão em fase de desenvolvimento e que necessita de financiamento público brasileiro.
Para enfrentar este grave problema, a comunidade acadêmica por meio de suas entidades representativas vêm se mobilizando, a exemplo da ABC e da SBPC, além de inúmeras entidades científicas, para o qual o é urgente o governo apresentar um projeto de lei para retificar o orçamento da União aprovado para 2021, e destravar os recursos contingenciados do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Este fundo criado em 1969, é o principal instrumento de financiamento à ciência, tecnologia e inovação do Brasil. Em março de 2021, a ABC elaborou um importante documento destacando 25 ações prioritárias para uso dos recursos do FNDCT, entre as quais destacamos para os objetivos deste artigo, a necessidade de “recuperar a infraestrutura de pesquisa das universidades e demais instituições de ciência e tecnologia”, essencial para manter os laboratórios e equipamentos de pesquisa em condições adequadas, para o qual o edital CNPq Universal é vital; a “promoção de pesquisa básica de qualidade em todas as áreas de modo a reforçar o protagonismo internacional da ciência brasileira e fortalecer a formação dos estudantes”, sendo importante para as cooperações entre nossos laboratórios de pesquisa e as melhores instituições do mundo; além de apoiar os atuais Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) e a “articulação das políticas de ciência e tecnologia federais, estaduais e municipais”.
Em conclusão, alguns ensinamentos desta breve síntese da história das instituições de pesquisa e de suas formas de organização mostram que: i) ao longo da vida da humanidade, a ciência e o conhecimento científico foram e serão sempre fundamentais para a melhoria da qualidade de vida das pessoas e do planeta; ii) é nos laboratórios de pesquisa que se desenvolve a pesquisa básicas e aplicada via cooperação internacional de seus pesquisadores; iii) é essencial cultivar junto a jovem população brasileira, o gosto pela pesquisa e a compreensão de sua importância para a qualidade de vida e formação para o exercício da democracia e cidadania.
Bibliografia
ABC (2021) FNDCT Liberado. Rumo ao Desenvolvimento Sustentável do Brasil, RJ
Jornal da USP em 09/04/2021 Orçamento 2021 compromete o futuro da ciência brasileira
VINCK, D. (2007), Sciences et Société. Sociologie du travail scientifique, Armand Colin, Paris, 303 páginas
SANTANDER (2010) A Universidade, Uma História Ilustrada, Madrid, 404 páginas
WIKIPEDIA (2021) A enciclopédia livre, http://www.pt.wikipedia.org.br. Acesso: 19.05.2021
*Anísio Brasileiro é Professor Titular e ex-Reitor da UFPE e Acadêmico da APC